(Foto: Autor desconhecido)
de Maria João Oliveira
A bambolear-se nuns setenta anos bem abastecidos de rugas e de sol, limpa a boca com as costas da mão e anuncia:
- Olha, vou-te bater, ouviste?! Vou-te bater! Anda cá! Olha, a avó vai peneirar! Canta comigo: "peneira...peneirinha... peneira... peneirinha..."
- Não quero!
- E melão, queres?
A criança, que já não vai em cantigas, salta como uma mola e estende a mão para uma talhada de melão,fresca como a brisa que brinca nos seus cabelos.
- Porco, já tens o melão cheio de areia! - grita, com as mãos cravadas nas ancas e a cabeça bem erguida,estratégia militar a que recorre, para melhor disciplinar a sua criança. Esta riposta aos guinchos, porque afinal ela "tem querer" e é preciso muita paciência para aturar os adultos.
- Eu berro, berro, farto-me de berrar, mas não consigo fazer nada dele! - desabafa a avó, despenteada e vermelha como um tomate, sem reparar na beleza das ondas e no papagaio de papel que saúda o mar, com as cores do arco-íris.
É certo que este papagaio nunca se constipa nem diz o nosso nome, mas também é belo nas mãos da criança que o olha, embevecida.
- Esta manhã, "alevantei-me" e já ele estava: " ó mãe, ó mãe, quero fazer chichi! Não há quem sossegue com este miúdo!
- Tu berras com ele e, logo a seguir, beijas o puto.
Em que é que ficamos, afinal? - questiona o filho mais velho, com ares de quem já deu uns mergulhos nos mares da psicologia infantil.
- Põe a boina na cabeça, estropício! - berra a avó.
- Olha o balão, olha o balão, não o rebentes! - grita a mãe
- Vai buscar a bola, pá! - ordena o primo.
Com as pernas ainda trôpegas, a criança abraça uma bola do tamanho do mundo.
- Upa, filho! Não podes com a bola? - pergunta a mãe,tentando dar uma ajuda.
- Se cais com a cara no chão cheia de creme, ficas lindo, ficas! - avisa a avó.
- Vamos à bica, Flávio? - convida o pai.
- Estás a fazer uma análise do lirismo migratório? -brinca o Carlos Oliveira, meu marido.
- Gosto de escrever, junto do mar, como sabes, mas jánão tenho papel...
- Isso não tem importância, porque tu até és capaz de escrever numa folha de alface...
Neste momento, chega o almejado silêncio. A família tinha ido à bica.
Vinte minutos depois...
- Dá a mão ao primo, Flávio! - ordena a avó.
- Eh, caramba! Manda a bola cá p´ra fora! - desafia o primo - caraças, a bola foge! Corre atrás dela!
Dá-lhe um pontapé, anda! Chuta prá qui!
O Flávio enche os pulmões de ar e dá um pontapé eusebiano na bola grande.
- Boa, pá! É assim mesmo! Ainda hás-de ser um craque nisto! Ter futuro, pá!... Um Figo!
O Flávio solta uma gargalhada que me refresca por dentro.
- Agora vais fazer ó-ó, ouviste? - ameaça a avó, naquele momento. Lá se vai a alegria do jogo, a alegria de abraçar a bola multicor, a alegria de transportar as sandálias no carrinho de plástico...
Fechar os olhos a este areal reluzente e a estas ondas provocantes, é um pecado que brada aos céus. Por isso, as gargalhadas do Flávio depressa se transformam no berreiro infernal que estou a ouvir.
- Bolachinha americana, pró menino e prá menina! Tenham calma! Não chamem todos ao mesmo tempo! Quem não tiver dinheiro, não se preocupe, não há problema. Não come e pronto!Cumprimentos lá em casa! - exclama o "homem das bolachas", baixo e gordo, sorriso aberto e pele bem tisnada pelo sol.
- Só cá faltava este! - resmunga a avó do Flávio.
- Eu quero bolachinhas daquelas - implora a criança com grossas lágrimas nuns olhos verdes de fazer inveja ao nascer do sol.
- Vais mas é "dromir" e pronto! - grita a avó, mais uma vez - olha, dou-te um "chocolá", se tu "dromires"a sesta.
- Eu não quero dormir! Não quero! - berra o Flávio,dando um pontapé furibundo na caneca de chá da avó. Na verdade, os adultos, por vezes, são uns desmancha-prazeres e uma criança nem sempre consegue ter paciência para os aturar. Saint-Exupéry teve razão, ao dizer que " as pessoas grandes (...) não conseguem compreender nada sozinhas, e é cansativo,para as crianças, estar a toda a hora a explicar".
Análise Literária, por Maria João Limeira
Este texto "Fogo cruzado", de Maria João Oliveira, tem tudo para ser Literatura (e das boas!): ritmo, movimento, dramaticidade, palco, platéia, na arte que às vezes é circo, em outras, ópera, na maioria dos casos, novela das oito, numa hora, patético e noutras,ternura...É uma Prosa boa que enfoca os conflitos de gerações,uma de terceira idade, outra de tenra infância.A autora combina bem os estereótipos na construção da história, misturando amor e lágrimas, arrancando da platéia ora risos e, em outras vezes, indignação. Mas tudo na maior alegria! E mais: ela mesma, Maria João Oliveira, é também personagem. É um texto criativo, onde o processo pedagógico se realiza às avessas, como no livro de Saint-Exupéry, no qual se inspira.Um ótimo texto!
Um comentário:
Passamos a vida a aprender com elas depois de termos esquecido da criança que éramos
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