Lançamento da Antologia Poética "Amante das Leituras"

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terça-feira, 17 de julho de 2007

Entrevista José Nascimento Félix *

por Vera Carvalho e Carlos Luanda
1. José Félix, falar de poesia e encontrar tempo para ela na influência da
globalização, no confronto com tanta insensibilidade, parece-lhe precioso ou milagroso?

José Félix
– A globalização não me preocupa; nem um pouco. A globalização é o corredor que ficou mais curto para vermos a última porta. Sempre se lutou para que a humanidade ficasse cada vez mais perto. Porquê lutar agora contra esse objectivo, pois continuamos a querer ficar mais perto dos afegãos, dos habitantes da Mongólia, dos resquícios habitantes do Camboja que dizem algumas palavras em português dos séculos XVI e XVII e cujos membros se chamam de Silvas, Alves, Francisco? Não! A globalização é uma consequência do desenvolvimento tecnológico dos equipamentos da informação e, por isso, também à poesia respeita.
Não se pode dizer que haja «confronto com tanta insensibilidade». As sensibilidades são outras, são diferentes e não digo que houve uma evolução ou um retrocesso: são diferentes, e pronto. Será sempre precioso ou milagroso falar de poesia e do(s) confronto(s) que ela causa. A poesia é, em si, já um confronto entre diferentes personagens: a criação de um poema é como o nascimento de uma árvore através de uma semente minúscula.
O tempo em poesia não existe. A poesia é. Pode não haver oportunidade para a colocar num texto porque não se tem a capacidade literária para isso ou porque dá trabalho fazer a composição das palavras escolhidas ou das palavras que se nos oferecem para o poema. A poesia está intrinsecamente ligada à evolução da humanidade. Evolui-se porque há poesia, porque se pensa poesia, porque se deseja poesia. O homem que inventou a primeira letra de câmbio para o comércio internacional foi um poeta.


2. Fazendo uso das suas palavras,

(…)não que eu encerrecada letra em cada quadrícula;não conjuga com a minha maneirade ser.desordenado, intuitivo e, até, porquepareceria que cada letra gritasse o somque lhe pertence num quadrado de ferrocomo se fosse uma prisão - as prisõessão incompatíveis com as palavras,conjuntos de letras feitas significantes,à espera da boca de quem lhes queira,na pronúncia, tomar o sabor original(…) (in poema "A minha caneta é azul"),

acha que a poesia é apenas o veículo do sentimento, sem obedecer a regras, ao ritmo ou uma arte literária com as normas da arte?

J.F. – Se têm lido muito do que eu tenho escrito em livros, antologias, páginas na Rede e nas listas de discussão verificam que no meio de uma certa desordem, até caos, há implicitamente regras e uma constante procura do ritmo e da musicalidade de um verso. O poema referido, escrito no ano de 1999, creio, é mais um manifesto acerca do que eu pensava, e, ainda, penso, do modo de criação poética. Não faria sentido colocar e / ou transmitir aquelas premissas num soneto ou numa quintilha. Isto, por um lado. Por outro lado não vejo que um soneto, que obedece a um esquema formal bastante rígido seja cerceador da liberdade poética. No soneto, nas quadras, nas redondilhas, maior e menor, nos vilancetes, podemos dizer e transmitir o que quisermos sem que a liberdade discursiva sofra qualquer dano. Tenho poemas com as estruturas mas diversas e nunca me senti apertado na cintura ao fazê-los.
A poesia como arte, pois não está directamente relacionada com a sobrevivência ou com a reprodução, transmite sensações e emoções, verdadeiras ou não, e não há normas para a produção artística. Quem confere uma certa "normalidade" são os leitores, críticos, que no conjunto da leitura da obra de um autor, vêem nela um «estilo», uma "norma" para classificação futura. É assim que se criam os «ismos» possíveis em tudo e, também, na arte que é, ela própria, um nome definitivamente vago.
De então para cá, desde a escritura do poema «a minha caneta é azul», a minha construção discursiva tem tido a mesma atitude pela diferença, pela experimentação contínua da linguagem numa procura constante do imo da palavra, da frase, do texto. Hoje só escrevo com tinta preta. Amanhã é possível escrever com tinta verde, amarela.


3. Acha que "há duas coisas na vida de que vale a pena escrever: amar e a morte".
Ainda se recorda do seu primeiro poema, do tema, do porquê da escrita?

J.F. – O meu primeiro poema, do qual a minha memória tem o fumo possível é sobre um pássaro que pousou num galho de goiabeira; um poema escrito aos 15 anos e com os ingredientes de um jovem daquela idade.
A escrita é uma passadeira entre dois estádios: às vezes comungam outras vezes não. Quase sempre não comungam.
Vivi sempre em exílio: exilo físico e exílio não físico. Recordo-me de fazer as orações a Adonai, à tardinha de sexta-feira numa casa, em Luanda, cujo proprietário era o dono de um dos mais famosos restaurantes e cervejarias da cidade: Dario Aleksandr Dukasky, um judeu dos puros, duro, ortodoxo, onde os meus pais iam com frequência. Permanece, e, ainda, depois da morte, um respeito muito grande por quem, no abrigo da sua casa, acolhia os membros de uma nação fustigada pela incompreensão dos países árabes, e por aqueles que nunca lutaram pela pátria que é hoje o Estado de Israel. Foi o início de um exílio já feito no núcleo familiar e que depois foi transportado pela via da escrita para outros exílios construídos através da palavra. Um poeta é um exilado da norma porque para o ser deve construir o seu próprio território.
Amar e a morte. Só vale a pena escrever sobre estas duas coisas. "Amar" é uma construção de gestos pessoais e intransmissíveis. Não falo em amor porque é um conceito muito vago e que vai mudando consoante o tempo. Amar! Sobretudo, amar! Aqui reside o meio de caminhar. A morte é a finalidade de todas as coisas. O fim. Zero. Embora o número "zero" se assemelhe a uma semente e uma semente seja a renovação de qualquer coisa: uma árvore, um arbusto, uma erva daninha. É o pensamento metafísico da morte. É sobre ela que escrevemos.


4. Para quem nunca teve a vivência prática da poesia, muitas das definições podem parecer assunto quase místico. Gostaria de deixar algumas palavras para os escritores que estão a iniciar agora?

J.F. – A prática da poesia. A prática da escrita. Ambas são íntimas. Não se pode desligar uma da outra. Escrever. Escrever. Escrever. Ler. Ler. Ler. A leitura e a escrita são irmãs. Escreve-se porque se lê e lê-se porque se escreve. A leitura dos clássicos é muito importante. O pregão constante do que é «moderno», e de uma forma errada, penso, afasta os jovens dos clássicos, esses, sim, plenos de modernidade. Alguém pensa que não é moderno o soneto de Camões onde diz "mudam-se os tempos mudam-se as vontades"? Isto não é moderno? As duas quadras que compõem o soneto estão actuais. Isto é que é ser moderno. Foi escrito no século XVI! Ler os autores gregos, latinos, os autores da Renascença. Para se ter um bom conhecimento da escrita em português é necessário ler Eça de Queiroz e o Padre António Vieira, portugueses, e autores brasileiros como Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa.


5. José Félix, a excelência do Mestre que dele faz nascer Escola, também o encerra num invólucro onde muitas vezes fica refém dos seus próprios horizontes e excelência. Sendo um inovador constante num constante romper e renascer, não teme que a sua escrita possa fazer Escola e que assim de alguma forma acabe por aprisioná-lo e limitá-lo?

J.F. – Esta questão é interessante pois encerra uma pretensa contradição. Se fico refém dos meus próprios horizontes não posso ser "inovador constante num constante romper e renascer". Ora, eu não estou num invólucro nem estou refém de qualquer horizonte. Eu não tenho horizontes, se bem que o horizonte é um conceito com uma grande mobilidade. Basta caminharmos para qualquer direcção para perceber que o horizonte muda de longitude e de latitude. Mesmo assim não me sinto manietado naquilo que pretendo fazer com a escrita: experimentação. A Escola é a liberdade da imaginação transposta para a escrita. A inovação pode ser feita com as velhas ferramentas, sendo a escrita a ferramenta principal: é o cinzel, o martelo, a colher do barro, a água, o molde o objecto moldado; é o espelho e o reflexo, o côncavo e o convexo, o "se" e o "és". A escrita é o dentro e o fora, o centro e a fuga. A Escrita não é uma prisão!



6. Quem nasceu ou viveu em África trá-la e ao seu ritmo, para sempre, no coração. Crê que África, tal como na música, é também mãe de toda a palavra, ou pensa que na génese ambas seriam o mesmo?

J.F. – Sabe-se que o homem desenvolveu-se em África, na costa oriental, na região que é hoje a Tanzânia e o Quénia até surgirem outras provas documentais fossilizadas. Sendo assim, também a palavra nasceu aí. África é o continente da desgraça. Não entendo porque se trata o continente africano como uma terra à parte depois de mais de cinco séculos de colonialismo e quase cem de neocolonialismo. Se a Europa e o resto do mundo gosta tanto de África porque se continua a espezinhar os africanos, a humilhá-los e a dar-lhes migalhas quando a sua matéria-prima alimenta os bolsos dos empresários europeus.
Em África, mais precisamente a África subsaariana, a música e a palavra andam sempre unidas. A não ser por influência europeia, nas línguas naturais bantos não há rima. São línguas de uma simplicidade tal que não precisam de artigos partitivos, pronomes e o plural dos nomes lembra o que acontece com o latim. Basta ter um conhecimento primário do crioulo de Cabo Verde para perceber a simplicidade comunicacional de uma língua híbrida como o crioulo onde o masculino prevalece.
Eu digo, sim, que África é a mãe de toda a palavra e de toda a música. E não só. África é a mãe de todas as artes. Pablo Picasso inspirou-se nas esculturas e desenhos africanos para desenvolver o cubismo. Claude Debussy ouviu música africana para se tornar o primeiro autor clássico da era moderna. Ouça-se "La Cathédral engloutie" que é uma obra-prima.
E, já agora, como um complemento, leia-se o poema com o mesmo nome e com aquele fundo musical, de Jorge de Sena.

7. Como encara o facto de a palavra ter sempre um valor transitório e finito, (um jogo entre todos os Eros e Morte?). Não correrão os poetas atrás da magia quimérica dos sons da imortalidade?


J.F.
– Não! A palavra não tem um valor transitório. A palavra, desde que seja dita, lida, ouvida por alguém, tem vida, transforma-se, metamorfoseia-se nos significantes e nos significados quando corre séculos e milénios. Não é por acaso que há especialistas que tentam, através da História das mentalidades, retirar o sentido da época nas palavras que lêem e decifram. O poeta é, ele próprio, um alquimista. Procura a transmutação do «ser» pela palavra, pela ideia intrínseca de um verso, um poema, um texto.
Não deixa de ser um jogo entre todos os Eros e Morte, mas, apesar de um texto estar perdido numa estante qualquer de uma qualquer biblioteca, mesmo labiríntica como a de Borges, um dia, num simples dia, um olhar pousará nas páginas e o poeta renascerá das cinzas, mesmo que algum índex queime as capas desse livro.·

8. A sua formação em História deve tê-lo posto perante a sensação de máquina do tempo que se tem quando se lê um poema escrito à distância de milénios.Quer partilhar connosco algumas breves passagens de poemas imemoriais que o sensibilizaram definitivamente como homem e poeta?
J.F. – A poesia do Antigo Egipto é muito interessante. O "O Livro dos Mortos", principalmente o capítulo 42 quando o defunto pretende tomar as formas de Ré, invocando a protecção dos vários deuses é sublime.

"[…]
Eu sou Ré, aquele cujos favores são duráveis.
Eu sou o criador que está no tamariz.
Se eu estou intacto Ré está intacto, e vice-versa.
Os meus cabelos são os de Nun.
O meu rosto é o de Ré.
Os meus olhos são os de Hathor.
As minhas orelhas são as de Uepuanet.
O meu nariz é o de Khentkhas.
Os meus lábios são os de Anubis.
Os meus dentes são os de Serket.
Os meus molares são os de Ísis, a divina
Os meus braços são os de Banebdjedet.
O meu pescoço é o de neit, senhora de Sais.
As minhas costas são as de Set.
O meu falo é o de Osíris.
As minhas carnes são as dos senhores de Kheraha.
O meu peito é o do Grande de prestígio.
O meu ventre e a minha coluna vertebral.
São os de Sekhemet.
As minhas nádegas são as do Olho de Hórus.
As minhas coxas e as minhas barrigas das pernas são as de Nut.
As minhas pernas são as de Ptah.
Os meus dedos dos pés são os dos falcões vivos.
Não há em mim um membro que não tenha um deus.
Tot é a protecção de todos os meus membros.
Eu sou Ré de cada dia..

Simplesmente grandioso!

A poesia no Antigo Egipto, mormente o erotismo tinha várias funções: demiúrgica, profilática. Havia uma poesia porno-concupiscente.
A poesia japonesa e chinesa tem um lugar cativo. Matsuo Bashô, o criador do haicai é de uma síntese incrível e com um olhar zen sobre a natureza que impressiona.


A pequena lagarta
Vê passar o outono
Sem pressa de se tornar borboleta.

A poesia chinesa dos séculos X a 13. O chinês Su Dongpo.

Vigésimo sétimo dia do sexto mês, poema composto estando eu embriagado, no Pavilhão da Contemplação do Lago

Peixes e tartarugas em liberdade me vêm seguindo
Lótus selvagens flores cem por todo o lado
Embalado pela água, da minha almofada vejo o vaivém da montanha
Levada pela brisa a minha barca sabe seguir o vagar da lua.

Su Dongpo

Os poetas árabes do Al-Andaluz como A- Um'tamid, Ibn Amar.

Há muitos outros, a lista é longa e seria fastidioso enumerá-los todos e transcrever alguns textos sublimes.
Aconselho vivamente a leitura do livro "poesia de 26 séculos", antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Seana, edições ASA, 3ª edição, Lisboa, 2001. Percorre um espaço temporal que vai desde Arquíloco, poeta jónico do século 8 a.C. até Friedrich Nietzsche falecido no ano de 1900.



9. Perguntar pelo futuro é já um lugar-comum, um cliché, mas correndo esse risco perguntar-lhe ia que horizontes desejaria romper um dia?

J.F. – Parafraseando o poeta espanhol António Machado, faço a vida caminhando. Não penso no futuro. O que me interessa é o presente que é a construção dele, do futuro, onde rompo as barreiras que se me apresentam necessárias para serem ultrapassadas.
A escrita é um instrumento fundamental para se quebrarem muitas barreiras: conceitos, que são construções espácio-temporais, como os conceitos morais ou religiosos, autênticas barreiras que impedem a humanidade de conviver com o total respeito pela diferença.
10. Senhor José Félix, muito obrigado pelas suas palavras. Quer deixar uma mensagem, uma frase, uma ideia particular aos nossos companheiros da Lista?

J.F. -
Escrever o poema como se fosse o último da vida.

*Entrevista a José Nascimento Félix

José Nascimento Félix, natural de Angola, nascido em 1946, em Luanda.Licenciado em História pela F.C.S.H. da Universidade Nova de Lisboa.
Promove a frequência de listas de discussão poética na Rede, tendo criado a lista Escritas suportada pela página literária pessoal Encontro de Escritas, em http://www.escritas.paginas.sapo.pt/, com entrevistas, divulgação de poemas e novos poetas de língua portuguesa. Análise, crítica literária, ensaio, trabalhos feitos por alguns associados para um grupo de cerca de 200 autores e/leitores de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Obra literária :
- Geografia da Árvore (a reinvenção da memória), Col. Poéticas de Lav(r)a, Múchia Publicações, Lda., Funchal, Outubro de 2003
Está publicado em várias antologias, destacando-se a Antologia de Poesia Actual Portuguesa, em edição bilingue, português e castelhano, de 2006, e uma colaboração com o poeta brasileiro, Aníbal Beça, membro da Academia Amazonense de Letras, no livro "Chá das Quatro", com haicais e que integra o livro Folhas da Selva, Editora Valer, Brasil
- Antologia Horizontes do PD-Literatura, Brasil, 1999 - Poiesis II, Poiesis III da Editorial Minerva (MNA), Portugal, 1999, 2000 - Antologia "Incomensurável" - Poesia a treze, Editorial Minerva, Portugal, 2000 - "Inspiração Erótica" - Antologia da Associação Cultural de Jundiaí, Brasil, 2000 - "Espelhos da Língua" da Sociedade de Escritores de Blumenau, Brasil, 2001 - "Quatro Poetas da Net", Edições Sete Sílabas, Setembro, Lisboa, 2002 - "Prosa & Verso", Projecto Palavra Azuis, Vol.2, da Sociedade de Escritores de Blumenau. - "Encontro de Escritas" – Antologia nº1, Lisboa, 2004 - "Encontro de Escritas" – Antologia nº2, Lisboa, 2005 - "Encontro de Escritas" – Antologia nº3, Lisboa, 2006 - "Encontro de Escritas" – Antologia nº4, Lisboa, 2007 Prefaciou os livros "http://www.3poetasemleiria.pt/", de José Gil, Don Lackewood e Constantino Alves."Laços & Lazos", um livro bilingue, de José Gil e Sónia Regina"De cada poro um poema" de Antoniel Campos"Catavento" de Everardo Torrez Getz, autor mexicano."Esfinge Lunar" de Goulart Gomes, poeta da Bahia, Brasil
Muitos dos seus trabalhos estão publicados na Rede, em várias páginas literárias digitais portuguesas e brasileiras, como a [NON], Usina de Letras, Palavreiros, Nave da Palavra Alternância, Jornal de Poesia , Encontro de Escritas, Seixo Review e no seu blog http://ateiadaaranh/a.blogspot.com/

Um comentário:

Lapa disse...

Há três tipos de mulher:

-as bonitas,

-as feias,

-e, as loiras...

(Cristóvão de Aguiar)