Lançamento da Antologia Poética "Amante das Leituras"

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terça-feira, 18 de setembro de 2007

Entrevista a Sónia Regina*

por Vera Carvalho e Carlos Luanda

1.Sonia Regina, quando e como despertou o seu interesse pela poesia?

Sonia Regina - A minha avó portuguesa me recitava inúmeras vezes a Nau Catarineta, eu adorava ouvir aquela história contada em versos e "via", junto com o gaijeiro, as "terras de Espanha, areias de Portugal!". Ela escrevia quadrinhas, me convocava para ver a forma nas nuvens, as folhas balançando ao vento. Minha mãe adora a natureza e fica embevecida com a beleza que há em cada coisa: o movimento do mar, a cor da grama e o cheiro da terra depois da chuva, o pôr-do-sol, as nuvens na montanha, a névoa na serra. Sempre nos chamou a percebê-la – a mim e ao meu irmão. Acho que foi assim que elas me despertaram a imaginação, cultivaram a minha sensibilidade e o interesse pela poesia – dita, escrita, vivida em cada coisa - , quando eu era criança. Mas ler poesia mais amiúde, procurar conhecer os poetas do mundo, das várias épocas, e escrever poemas, foi a partir de um projeto de poesia que desenvolvi com crianças de dez anos, em 1999. Fui procurá-los para apresentar a eles, incentivei-os a escrever. Eles criaram, e eu junto. Não parei mais.

2. Como escritora e psicanalista é possível fazer-nos uma análise da sua relação com aquilo que escreve?

Sonia Regina
- É complicado a gente analisar uma relação nossa. Nem sei se, ainda que tentasse, não resultaria num apanhado de inferências, suposições. Mas posso dizer do que percebo, do que sinto.
Gostava de inventar peças de teatro – que encenava com os amigos -, quando era criança. Contos de fadas, princesas em vestidos esvoaçantes, histórias de amor.
Escrever sempre foi uma necessidade. Dos desabafos adolescentes passei a escrever crónicas e algumas narrativas em 1ª pessoa, ou em 3ª pessoa. Não me agrada criar personagens ou escrever diálogos, acho que por isso nunca escrevi um conto, ou um romance.
Sempre escrevi por prazer, escrevo quando tenho vontade. As listas me ajudam a dar um ritmo, mas não me obrigo. Passei um período ultimamente em que precisava escrever todo dia. Às vezes dois poemas por dia. Mas não penso sobre isso, escrevo e pronto.
O que não gosto, jogo logo fora. Só dou título se acho que o poema é bom – ou razoável - e não tenho escrito prosa, a não ser alguns ensaios, de estudo.
Não costumo ficar relendo o que escrevi, embora eu o faça quando visito o Espaço Aberto do Joaquim Evônio e o meu blog: acho-os bonitos, estar por ali é relaxante.
Na prosa eu penso, pra escrever, na poesia não. Não escrevo mandando recados, nem em poemas do amor eu o faço. Tampouco escolho um tema. O poema acontece em mim, às vezes a partir de uma frase que escute ou leia. Às vezes de uma palavra, às vezes de uma imagem. Anoto em qualquer papel e já tive um caderninho dentro da bolsa, o "Dolores Duran"(é o nome de uma antiga poeta-letrista, famosa por aqui – que tinha um) para ir anotando coisas que me surgiam. Já aconteceu de eu acordar no meio da noite com um poema pronto dentro da cabeça. Se não levanto pra escrever, depois esqueço. Não acho que seja um transe, como se achava dos poetas da antiguidade. Acho que é uma vocação, talvez um dom. Um mistério. É uma voz íntima que quer dizer o que nem sempre conheço – ou reconheço. E eu deixo-a falar.

3. Qual a sua intenção ao criar o conceito "Laboratório da Palavra" e por conseguinte a revista digital?

Sonia Regina - O conceito foi formulado a posteriori. Nos laboratórios da palavra trabalha-se com a palavra e a imagem, são oficinas de escrita criativa. Verifiquei que se consegue expressar muito dos sentimentos alocados na carne e na alma, alinhavados ou tangentes, utilizando a imagem. Ela incentiva e ajuda na composição, quando a palavra é insuficiente. Na revista digital divulgamos essas expressões publicando os novos autores e a expressão universal, esta através da poesia de autores de vários países. Nos laboratórios da palavra trabalha-se com o mistério, a paixão, o amor, o ser, tudo... e nada.

4. Na "Laboratório da Palavra" e no "No fluir da metonímia", há uma união entre o áudio visual e a literatura. Você acha que há a necessidade de usar outros recursos além da linguagem verbal para fazer poesia?

Sonia Regina - Não, não acho necessário. É que tento ir além da palavra. Nem sempre a palavra diz do que quero expressar e a imagem ajuda a compor. É como diz a Clarice Lispector, a música e a pintura têm mais possibilidades de criar os seus elementos. Pode-se criar um pigmento de um tom ou cor inexistente; uma suite, uma rapsódia, um arranjo jazzístico. A literatura tem palavras pré-existentes.

5. Colaboradora em workshops e palestras no Brasil, Sonia, qual a sua visão de "Escrita Terapêutica"?

Sonia Regina - Terapêutica, não psicoterápica. Não é um objetivo nem uma questão de catarse, de despejar algum acúmulo emocional, embora no consultório – com ajuda de um psicoterapeuta menos ortodoxo - se possa usar a escrita como meio auxiliar, mesmo Freud relata casos assim. A escrita terapêutica à que me refiro diz respeito ao resultado da escrita: no depois se verifica que fez fluir algo que estava intimamente obstruído. O escrever organiza. Uma vez dita, a coisa se inscreve, se significa e re-significa, ganha corpo e expressão concreta. Penso que através da escrita alguns `nós' interiores podem ser desatados, ou elaborados.

6. Sonia, ao ler-te tenho sempre a sensação de sentir-te as construções das palavras como elementos de delicadas filigranas. Peças que dizem tudo pela arte de capturar os espaços através da nobreza que os emoldura em estruturas de elegância e que lhes confere luz, brilho e volume. Nunca tens a sensação que um poema possa implodir sob a sua aparente fragilidade, ou é mesmo esse desafio uma das tuas motivações?

Sonia Regina - Respondo não às duas. Meus poemas não são contidos por mim. Sei que sou vulcânica, mas entro em erupção normalmente. Ou seja, tudo meu é intenso – sou alegre, triste, amo, odeio, me deslumbro com as coisas, tudo intensamente - e penso que isso se reflita nos meus poemas. Se alguns são doces, é porque sou mesmo meiga e afetuosa. Minha delicadeza não vem de uma fragilidade e sim de uma gentileza que me agrada. Não sou rude, a não ser que me invadam, façam alguma injustiça ou maltratem quem eu gosto: aí fico irada e sei que minha palavra fere intencionalmente, mesmo os mais fortes. Mas com leveza, sem ironia ou rispidez. Há alguns poemas que escrevi assim.
O que me desafia são as causas dadas como perdidas, algumas vejo refletidas nos poemas. E o que me motiva é a paixão: tenho que estar apaixonada sempre, ou por alguém ou por uma idéia, ou por uma atividade – profissional ou não. Às vezes se reflete nos poemas, às vezes não.
Na verdade, é o poema que me respira e eu...Bem, acho que esta foi a melhor descrição que já fizeram de mim: "Poeta por vocação, psicanalista por paixão, mãe por amor, mulher do mundo por missão, artista por mistério…"

7. Se por mera hipótese nos víssemos de repente a viver num mundo sem o conceito de poesia, como pensas que seria encarado alguém cujo olhar a inventasse?
Sonia Regina - Olha, ontem mesmo uma pessoa com quem conversava, ao saber que eu era psicóloga, disse (sorrindo) que todo `psi' é doido. Quando eu disse que era poeta, aí é que riu mesmo. Não acredito que houvesse mudança, penso que a história se repetiria. O poeta é mesmo estranho, às vezes é um bom espelho, às vezes incômodo. Geralmente produz perplexidade, estranheza. É desconhecido e enigmático. Tem um olhar diferente, por vezes contacta o Belo e geralmente toca os corações. Só que na antiguidade o poeta era visto como o que acessava o passado, escrevia em transe a partir do contato com os deuses. Tinha tanto respeito e valor quanto os oráculos, que acessavam o futuro.

8. Achas que ser poeta é um privilégio, uma iluminação, ou é uma predestinação maldita?

Sonia Regina
- Acho que nenhum dos três. Mas penso que já comentei bem acerca disso, anteriormente.

9. Dada a tua formação académica multi-facetada e especializada em áreas complexas do infinito interior humano, e dado que transportamos toda a carga de conhecimentos em tudo o que fazemos, que perigo (ou não) sentes de puderes deixar escorregar o teu dizer poético para o hermetismo?

Sonia Regina
- Acho que todo o perigo, mas não só pela minha formação. Sou uma pessoa comunicativa, simples, faladeira; e ao mesmo tempo tímida – sei que por vezes pareço antipática. Sou reservada por natureza, embora gostem da minha companhia alegre. Sei exercer a autoridade, tenho boa auto-estima, sou completamente independente mas adoro a proteção e o cuidado masculinos. Não sou previsível, acho que sou meio paradoxal. Se eu sou por vezes não-compreendida, como não acontecerá com a escrita? A minha prosa tem poucos fatos, o que a torna, por vezes, hermética. A poesia corre o mesmo risco. Que fazer? Andei dizendo que queria que o açougueiro da esquina se emocionasse com o que escrevo, e andei tentando mudar o jeito de escrever. Deu-se um branco. Tenho que me satisfazer se conseguir chegar ao seu coração, ainda que não entenda uma ou outra palavra, ou não compreenda do que falo. É como diz Herberto Helder:

"Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser. (...)"

10. Olhando para trás, e recapitulando com um olhar crítico mas duma forma genérica, que poemas te arrancaram os pedaços da alma com que os escreveste e que poemas não escreverias?

Sonia Regina - Um em especial me "arrancou pedaços da alma", chamado "Assinatura". E mais três: "Grito" *, "Reforma Agrária" *, "Jardineiro da Vida". Muitos do amor, uns eróticos, mas como referi-los todos? Refiro um que fala do amor por tabela, diz da saudade de certo tato: "Navega o lápis a memória do tato" *.
Não escreveria "quando chovo no mar" – acho-o horrível – nem "o olhar sensível toca o solo, reverso" – não entendo nada do que lá está escrito.

11. Por último, e agradecendo o tempo dispensado, gostaria dumas palavras breves, e como sempre especiais, do teu pensar para todos os colegas e amigos da lista. Obrigado mais uma vez.

Sonia Regina - Agradeço o "como sempre". Esta especialidade – se há e aparece – deve-se à especialidade desta lista, dos companheiros, do clima. Sinto-me completamente à vontade para ser aqui do jeito que sou e sempre tenho a sensação de acolhida, com qualquer humor ou expressão na palavra. Isso é bom. O jeito simples e cordial também me agrada, até o jeito de se discutir: as diferenças são respeitadas. Lamento é não comentar ninguém e me sinto em falta. Mas é um princípio que teria que rever: como não dá pra comentar muitos, não comento nenhum. E os que são lidos ficam sem saber.
Bem, obrigada pela oportunidade e pelo trabalho: percebe-se que houve muito, para me apresentar essas questões magníficas, que me laçaram completamente. Foi um imenso prazer respondê-las, desculpem-me se me estendi. Parabéns aos dois.


* Sonia Regina é o nome literário de Sonia Regina Campos, carioca, escritora, psicanalista e professora. É aluna do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UERJ, onde se especializa em Literatura Brasileira. Exerce a psicologia para o Estado do Rio de Janeiro, tendo sido licenciada pela PUC/RJ e pós-graduada pelo Instituto de Psiquiatria/UFRJ.
É a editora responsável pela revista digital Laboratório da Palavra, que fundou há 6 anos, onde divulga a poesia universal e publica novos autores. As atividades de produção e criação de multimídias unidas à literatura lhe propiciaram verificar outra linguagem do subjetivo, que originou o projeto de pesquisa "Habitações Poéticas do Teatro: Cenários e Escrita Dramática".
Tendo criado o conceito "Laboratório da Palavra", coordenou cursos de formação e grupos de estudo e criação de texto que associam a palavra à imagem; proferiu palestras e workshops no Brasil, em Portugal e no Uruguai, onde também apresentou o trabalho "Escrita Terapêutica" - de sua autoria -, no 4º Encuentro Internacional Literario Abrace – Solidariedad entre Creadores.
Em novembro de 2001 foi a Montevidéu – como convidada internacional da Mesa Redonda `Ciclos Literários", do Movimento Abrace – para proferir comunicação científica sobre a investigação que realizava no Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro com pacientes do hospital-dia, na Oficina da Palavra que coordenava. Essas produções originaram o livro Ser poeta é se viver e foram objeto da matéria publicada por Artur Dapieve no Jornal O Globo, disponível no endereço:
http://www.geocities.com/laboratoriodapalavra/COLUNA-DAPIEVE.htm
Foi uma das diretoras do Grupo Cultural Contraponto - produtora de eventos culturais, cursos, sites e revistas virtuais - e co-fundadora da editora Letra&Cia.
Integra os Grupos de criação e discussão literária do YahooGrupos: Amante das Leituras, Netpoema e Encontro de Escritas, em cujas antologias consta.
Lançou em Portugal e no Brasil Uitzilim Poemas e Laços y Lazos - Manual de Escrita Criativa, este em co-autoria.
Apaixonada pela poesia - antes de tudo poeta -, tem seus trabalhos publicados na web nos endereços:
- No fluir da metonímia – Poemas (blog pessoal) http://sregina.zip.net/
- Varanda das Estrelícias - Espaço Aberto http://www.joaquimevonio.com/espaco/sonia_regina/soniaregina.htm
- Mundo do Poeta - www.mundopoeta.net/autores/sonia_regina.htm
- Dubito Ergo Sum – Site Cético de Literatura e Espanto http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/1indfic.htm
-Revista Digital Laboratório da Palavra http://br.groups.yahoo.com/group/laboratoriodapalavra

*grito

Eu, por mim, não dou nada
tomo, pego, arrebato
devolvo cada mau trato
fico é fortalecida
a cada farsa, mentira
cada punhalada cravada
me lança numa jornada
teimosa, vou à batalha
resisto, não quero ser pária
afio minha navalha
encaro toda desdita
transformo a vida diária.

*http://www/.casadobruxo.com.br/poesia/s/reforma.ht

* Navega o lápis a memória do tato

Navega o lápis a memória do tato, estremece
na ponta dos meus dedos, oferece-se ao ato
numa respiração acelerada

ama-me e me despe de toda civilização

sou já poema, versos que ardem
escritura da saudade num papel
sem linha, regra, lei ou margem

Sonia Regina

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