Lançamento da Antologia Poética "Amante das Leituras"

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segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Devia ser Natal

Foto: Bruno Espanada


de Jorge Casimiro


Vejo o teu retrato ao piano. Devia ser Natal. A tua mão pousa no recato do teclado enquanto tu posas para o magnésio à la minuta da máquina fotográfica com um olhar vivo de menina feliz. Longos cachos de cabelo encordoado escorrem-te pelos ombros frágeis. E chega-me um som sustenido da memória sépia desse momento longíssimo.

Afasto-me uns passos. Fecho os olhos. E revejo a cena a que nunca assisti. A família reunida em teu redor, como se tu fosses o centro de um pequeno mundo. Suspensos todos do teu talento precoce. Devia ser Natal. Havia ainda presentes por abrir junto à grande boca da chaminé, onde um fogo luminoso consome troncos geométricos com uma voracidade aconchegante. Uma cadeira de baloiço voga lenta em contraluz, tripulada a compasso por uma silhueta esguia e escura.

Ouvem-se palmas carinhosas. Deves ter terminado mais uma peça. Talvez Chopin. Há um faiscar trémulo de velas nos cristais da mesa, posta a preceito para a solenidade ritual de mais uma reunião familiar. Devia ser Natal. Avós, irmãos, pais, tias, primos distantes. Seríssimos senhores de fartos bigodes aristocraticamente retorcidos e encerados. Penteados de risca ao meio esculpidos a rigor e brilhantina. Senhoras assertoadas numa elegância démodée. Crianças aquietadas com severidade para o enquadramento estático da objectiva... Todos aqueles rostos desconhecidos que percorro em velhos álbuns fotográficos herdados já não me recordo de quem. E o cirandar atarefado de um exército de criadas engomadas de folhos de renda branca sobre o negro impecável das fardas. Trazendo e levando terrinas e travessas, pratos e porcelanas. Para que tudo saia perfeito. Devia ser Natal. Para que tudo fique memorável; no registo eterno de mais um retrato de família que sobreviverá a todos, no seu esmaecer lento. Para ser contemplado com uma curiosidade indiferente por perfeitos desconhecidos que virão do futuro. Desconhecidos como eu, que olho o teu retrato ao piano em pose para o passarinho que te trará até mim, sem que tu o saibas ou possas sequer suspeitar. Se não, talvez até me acenasses com essa mão delicada e pálida que pousas no colo com a serenidade afirmativa de quem confia no futuro. Sem te dares conta de que o futuro é tão transitório como tu ou eu, ou este retrato antigo em que os meus olhos tropeçaram por acaso. Porque o acaso é o verdadeiro futuro de todos nós. Um futuro de Natais sucessivos. A engordar compassadamente álbuns e álbuns de retratos com sorrisos e inocências de criança.

E neste meu futuro solitário, ponho um disco a rodar na aparelhagem: um coral qualquer de vozes infantis e piano em fundo. Recosto-me no meu sofá preferido, afundando-me lento de torpor em longas fumaças de cachimbo. Devia ser Natal. Acaricio o teu retrato ao de leve, uma última vez. Com a timidez fugidia de quem devassa um tempo alheio, desbotado. Num gesto sussurrado, cúmplice. Como quem combina um segredo.

Fecho cuidadosamente o álbum no vermelho frágil da capa com vestígios mínimos de letras a ouro, e volto a depositá-lo no fundo da arca onde te encontrei por acaso. E no silêncio da neve lá fora, a embalar a noite com o seu algodão, tu acenas-me suavemente, reveladora. Como quem segreda um futuro.


2 comentários:

Vera Carvalho disse...

Os meus parabéns ao Jorge pelo belíssimo texto.
Adoro a singela sofisticação com que adorna os textos ou poemas.
Um beijo já saudoso...
Vera Carvalho

amantedasleituras disse...

Parabéns ao Jorge pelo conto enternecedor. li-o como os olhos de criança.

Parabéns ao moderador Denilson pela inciativa e à Filipa pela escolha da imagem sempre representativa do tema.

e im jinho para a querida Vera pela doçura nos seus lábios.