Lançamento da Antologia Poética "Amante das Leituras"

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terça-feira, 26 de junho de 2007

"A lucidez também é louca"

( Foto: autor desconhecido)

de Teresa Gonçalves, in "Louco, homenagem ao Quim"

01

Louco é aquele pensamento
Que se satisfaz na chama
Da luz que o procria

Não procura a lucidez
Dos pólos das avenidas.
Essa imensidão reflexiva:
Análoga a uma mente fria
Equivalente à profundidade
Deste silêncio gerador de manhãs

Uma só vontade prevalece: seguir
a cauda de todos os cometas.

Que louca é essa poesia.
Despe-se para os garimpeiros
Na lucidez do amanhecer estrangeiro
E veste-se do matiz alheio

Como se a lucidez de cada um
Nada nela descubra, senão o devaneio
De um seio, no corpo que louco
Facilmente se transmuda


02

o que desafio por vezes
ente o sopro e a sua sombra
junto ao martelo do ouvido
é como por vezes se o corpo
se abre e o poema nasce
louco e poiso o espaço
de um silêncio rouco

este desafio por vezes é um
arco em eco , tão próximo
da lucidez
um pouco para lá do que
os lábios seguram

03

… louco,
arrebato meio Mundo
com ele me confundo,
disfarço a madrugada,
relego o passado, antevejo o futuro,
alcanço o sublime, massacro oceanos
invoco Neptuno,

solitário, entristecido, soturno
recalco amarguras,
ventanias do desassossego
nas noites de pesadelo,
cerradas… escuras,
estrelas no infinito,
desvairado,
perdido,

lúcido, interrogo o ignoto por questões de pavor,
abafo sentidos,
guardo rancor,
afago quem passa,
esqueço a desgraça,
arranco gemidos, dores, medos,
guardo segredos,

enganador me contradigo,
falo comigo,
emendo,
reduzo,
elevo meu ser,
louco varrido,
razão na lucidez que perverte,
ludibria,
converte,
loucura que busco,
verdade que ofusco!!!...


04

Portas abertas...
A bem da verdade,
nunca uso trancas.

Quantas vezes
me abaixo, catando
mil e tantos cacos.

Não me despedaço!

Apenas proíbo
que tons ocres
decorem meus dias.


05

Um guru em padmasana
Meditou em frente ao mar
Por horas horas e horas

Ficou tão lúcido tão lúcido
Que revelou ao discípulo:
aquele mar mais não era...

Que um monte de agá-dois-ó.


06

coisa pouca a lucidez
fecha os olhos
e sonha
como energia
solta

sonhos em devaneios!


07

Chama-me louca
de amor visto o corpo de flores
e respiro odores do teu pólen

Louca na lucidez de te amar
ainda que seiva de outras colinas

chama-me louca
de amor tomo a seda de tuas crinas
e beijo a meda do teu vício

louca na lucidez de te amar
ainda que laguna de outras águas

chama-me louca
perdida em redor de tuas ilhas


08

louco coração
surdo à lucidez cega.
só ouves
o amanhecer da dor
onde paira o silêncio.


09

Lúcida dou ao fogo as duas mãos.
Já não preciso delas e não há meia-lua,
meia-palavra ou coisa que o valha
que me faça recuar ou correr. Por que
temer as salamandras, se ao redor do fogo
celebram a aurora, ao anoitecer?
Louca, tenho no cristal vermelho
dos meus óculos novos o poema de quintal,
que sangra o prumo caseiro, a caligrafia rota.


10

Lúcida?
Perdida – achada pela razão
que bebe e gorgoleja
os deleites do coração
e o condena ao fogo.
Morro assim quando a lucidez é louca!
Tomara que fosse pouca…


11

sozinha, não solitária,
digo ao sol que não pára.
reclamo ao universo
da escuridão, do vazio
de flores, afetos, sentidos
ou qualquer atração

enganadora, esqueço.
sinto sabor no insípido
cometo poemas, grito
se encontro o caminho
do meio, não faço trovas:
proseio.


12

Não lavava as mãos, nem penteava os loiros cabelos
Cantarolava por horas, voz rouca, desconexa canção
Perdia a noção do tempo
e sequer a pressentia no espaço

– Louca! – clamavam dela na praça

Tolos! Todos! Era a absoluta lucidez
de toda sua pequenez que a embalava
enquanto bailava – bela e nua – no
seu perceptível nada.


Índice de autores:

01 – Luís Monteiro da Cunha
02 – José Gil
03 – Manuel Xarepe
04 – Belvedere Bruno
05 – Denilson Neves
06 – Assim (F. C.)
07 – Bernardete Costa
08 – Teresa Gonçalves
09 – Sónia Regina
10 – Vera Carvalho
11 – Sónia Regina
12 – Linda Maria


Comentário do Moderador:Caros amigos,

o meu objectivo inicial quase foi conseguido com este mote.
Forçar-vos a escrever sobre loucura e lucidez, tentando que se esquecessem das palavras usuais conotadas única e exclusivamente com a beleza.
Era tempo, na minha óptica, de deixarmos de exultar as mesmas imagens e simbologias inerentes a todos os poetas, tentarmos pessoalmente, enveredar por outras imagéticas ou caminhos, como queiram apelidar.
Fico agradado com os trabalhos de todos, apesar de sentir (e saber intimamente) o quão difícil é d_escrever a realidade que se nos oferece quando confrontados com um tema menos usual e que num primeiro instinto nos obrigamos a pintar com flores e nuvens. É tempo de nos esquecermos momentaneamente de quem nos lê. Escrevamos o que nos assombra, aquilo que quer jorrar do nosso peito a toda a hora e que covardemente refreamos, porque achamos não ser irmanado do belo. Quem poderá, com propriedade, afirmar qual o conceito puro da beleza, se Platão, Aristóteles, Kant, e outros, não o conseguiram completamente?
De notar, a subtileza de alguns, que escreveram sem a frágil tentativa de embelezar apenas, os poemas, o que é para mim motivo de enorme regozijo.
Creio que começam (aos poucos) a perceber o motivo destes desafios e a disparidade dos temas que sub-repticiamente, vou propondo: aprender; experimentar novos caminhos, novas vertentes; para que cada amanhecer tenha a matiz diferente da anterior, dado que, apenas experimentando cada passo, se consegue chegar a bom porto.

Parabéns a todos e obrigado

Luís Monteiro da Cunha

segunda-feira, 18 de junho de 2007

"Sexos entrelaçados germinam infinito,

( Foto: autor desconhecido)

de, Joaquim Evónio, in “Terra Húmida”


01

do sexo o ser
nasceu do nada
e tudo aconteceu.!.

02

Infinito é o amor que circula
Nos raios adjacentes aos olhos púlpitos
Nasce e morre o corpo; no êxtase do sexo angelical per natura
Entrelaçados estes anjos congeminam infinitos rubores

Mas se o amor é sexo de expressa vontade corrediça
Consentânea é a verdade de quem morre de amores
Colam-se os sexos nos lábios línguas nádegas e cabeludos
Dedos sodomizam paixões obliteradas de passageiros
Nas noites sumidas de pudor infinitesimal
Se a esperança morresse em cada sexo e não palpite
O sangue desconhecido esvaía-se em rio no caudal germinal

03

não é todo entrelaçar que nos fecunda
e acende o sexo
nem que como labareda nos toma
ou em faíscas nos percorre
arrebatando a carne

não é todo abraço que na pele
entranha o cheiro, estala os pelos
num crepitar de corpos
elevados a uma potencia infinita

não é todo ardor que aquece as entranhas
corre pelo sangue, desagua na língua

talvez se inicie nalgum entrecruzar de olhares
a chama que nos entrelaça
como um abraço de corpo inteiro
a germinar infinito

04

… finitos prolongados por germinação,
continuidade que se entrelaça num amplexo,
amor carnal, junção através do sexo,
corolário duma ilusão,
elevação disfarçada por lírica de encantar,
verdes campinas,
um cicio, um pipilar, doce olhar,
densas florestas, magias infindas,
flores silvestres de variado colorido,
tela de pintor tresloucado de amor,
desejo incontornável, sofrido,
cabelos que rolam por ombros esbeltos,
contornos,
imagem que se idealiza
na nesga dum corpo que se adivinha,
entregas, encontros,
partilha que sublima,
fantasia que avoluma sonhos
quando nos pomos rendidos por rostos
que se guardam no mais profundo recanto do pensamento,
encantamento,

… langores, margens idílicas de ribeiras de águas mansas,
frondosas árvores, dois corpos nus que se abraçam,
evocam o princípio, fundamento, base de tudo que fomos,
repetição dum acto tão natural, emoção,
exaltação,
quando te espreguiças com deleite, descansas,
abres teus olhos que me enlaçam,
lagos de águas puras, espelhos onde me vejo,
pedras preciosas de jaez incomensurável,
retenho, rendido a teus encantos,
teu sorriso, teu beijo,
teu ardor,
teu amor,

avoco ritmos, dores, idade que não pára,
invoco ténue lembrança que separa
momento já vivido,
aponho um laço com que traço destino,
enleio aquilo que fomos,
que somos,
sorrio perante gesta que se arresta no tempo infinito,
antevejo continuidade por gestação,
ligação carnal sem líricas de encantar,
conjugo o verbo amar
sem recalques, embaraços, na minha condição de animal,
controlo a fúria, a raiva, embalo a paixão,
torno-me mais racional!!!...

05

Olha-me a alma por dentro de minhas entranhas,
enxerga o invisível dos meus olhos,
sente meu corpo e ouça a minha música.

Deixa-te desvendar a cada toque sentido
desagua no meu prazer.
Faz-me acreditar que o céu me sorri.

Deita-te em chamas entre minhas mãos
e deixa-me explodir num orgasmo sagrado
onde brotam lágrimas de felicidade.

06

a língua intacta na outra língua
a lua da pálpebra arde onde
a língua toca, em veios lisos

é a língua a vela do teu barco

07

calamos a voz
sacudimos os colchões
respiramos a brisa
de recheios e tensões
dos nossos sexos
entrelaçados
pra sossegarmos depois
arfados
num doce amplexo
de uma só foz.

08

Espero-te
aguardando-te na minha solidão
infinita de sexos entrelaçados em
desespero… vão.

09

Infinito

Me laça
vou
e alça
vôo
enlace
sou
Teu.

10

No infinito
Do teu sexo
Entrelaço-me
Em tuas mãos.

11

Abracei-te e senti
que o calor ainda era
o mesmo de antes
que nossos entrelaçares
se perdessem.
Talvez aí resida
a esperança, que não recua,
insistente e audaciosa.

12

Na cedência frutífera
No cálice sedento
Na volúpia ardente,
Trocam-se os espasmos
Carrega-se o amor,
Transportam-se pensamentos
Escrevem-se desejos...
Rasgamos o frio,
Mordemos a pele,
E desafiamos
O abismo da diferença.

13

Para entender a importância da camada de Ozônio
ou por que os olhos da Maria brilham mais que os do Antônio...
Leia Joaquim Evónio

14

Queria agora sair do canto
Fugir das ruas apagadas
e acender-me em beijos-segredos,
pelas vielas, largos e becos,
E esplanadas do teu corpo.
Mas sou apenas, como dizes
O vento oco
A brisa pequena
Um ar vazio sem alma ou gosto...
Que passa só sem deixar rasto.
Mas sonho de ti, teus lábios quentes
Onde seco a saliva
Dos cabelos que ondulo
Pelos voos do meu querer
E mesmo sabendo já não ter nexo:
Sonho ser feito desses aromas
Quando em remoinho te levanto as saias
E tu de mãos que já não bastam
me envolves no teu sexo...
Mas sou isso que tu dizes.
Um ar vazio, parado sem graça
Preso ao corpo desta garrafa
Que os teus lábios me ofereceram
Quando me bebeste ao canto da praça...

15

… avessos, escorreitos,
perfeitos,
com laços bordados,
traçados,
bem feitos,
rendas mui finas,
diáfanas,
são galas,

complexos os sexos,
torneados
reversos convexos
que encaixam, ajustam, se dão,
se enlaçam na escuridão,
finitos nunca vistos
germinam quereres entre seres,
amores,
entregas, paixão,

olhos perdidos,
cerrados,
amplexos
são plexos,
são nexos,
encerram gostos,
bem postos,

sobrepostos,
apostos,
compostos,
comungam feitos arrebatados,
juntam corpos,
juntam mentes,
quereres,
sonham Paraísos perdidos,
clímaxes que gritam,
convidam
doce refrega,

conseguidos
num laço traçado,
bordados tão finos,
sexos prendados
tão densos, complexos,
convexos,
inversos,
avessos,
confessos,
são versus diversos,
infinitos…



Índice de autores:

01 – Francisco Coimbra
02 – Luís Monteiro da Cunha
03 – Sónia Regina
04 – Manuel Xarepe
05 – Andréa Motta
06 – José Gil
07 – Teresa Gonçalves
08 – Bernardete Costa
09 – Anderson Santos
10 – Cármen Neves
11 – Belvedere Bruno
12 – Mónica Correia
13 – Denilson Neves
14 – Carlos Luanda
15 – Manuel Xarepe



Comentário do Moderador:


Amigos falando de sexo, entrelaçados ou não, germinaram as palavras, parte da seiva, contida no travão do pensamento, que não ousaram extrair como aluvião que os ilumina numa noite de paixão. Muitos outros, (esses, é que gostaria de os ler) permaneceram acordados, espevitados pelo tema, mas amordaçados e castrados pelo decoro.
O tema escolhido, não foi inocente. Pretendia testar o arrojo do escritor. Desprender, cortar amarras, culturais, sociais e pessoais, sem contudo, pretender a pornografia, apesar de esta apenas existir nos conceitos personalizados de cada um de nós.
Parabéns a todos, mesmo pelo comedimento a que se obrigaram na elaboração dos trabalhos.
Foi fácil? Sei que não. Nunca é fácil escrever sobre sexo e ao mesmo tempo querer ser original.
Espero que seja do vosso agrado, a sequência e formatação elaborada neste longo e lindo poema assexuado
Obrigado.

Luís Monteiro da Cunha

terça-feira, 12 de junho de 2007

"Sobre o silêncio do poeta há sempre uma pira que o sol acende."


de Maria João, in análise do "Verso náufrago"



01

No silêncio das horas mortas
Imaginação abre as comportas
O poeta pira!


02

A pira que o sol acende
verte sombras
e o silêncio é mais
do que o poeta diz
quando adormece.


03

Não queres mais transformar o mundo,
a rebeldia da juventude cedeu lugar
à mudez da vigília.

Remanesce em ti a imaginação fértil
e a viola que dedilhas
sentado numa poltrona surrada.

04

Silêncio!
Há vozes que se retraem
com medo da vida...
Sofrências que isolam,
num arrastar de correntes,
lágrimas em ponto-de-cruz...

Coroas de espinho,
enfileiradas para a via crucis.

Por que sofro,
se nada tenho com isso?


05

Sobre Suu Ky a luz da Birmânia
sem a tensão cativa, soberana de
todos os dedos e olhos compacta
habitação plena da banda larga
a casa encantada de Epimeteu


06

... o poeta não silencia, pensa, sofre, amedronta, denuncia,
ri do que vê, incomoda,
incendeia tal como sol resplandecente em céu límpido, azul,
tão puro, em harmonia,

quando se não comporta, sagaz, quase matreiro,
como chama incandescente,
persegue continuamente qualquer ideia presente,
quando a tem, quando a sente,
matuta, barafusta,
revira-a com presteza,
primeiro,
dá-lhe a volta quando a contorna, sente-a como imenso vespeiro,
alheado,
pouco se importa,
depois de ter a certeza
coloca-a no papel como pira que o Sol acende,
num instante, num repente,

faz tremer todo o Mundo, abala alicerces bem fortes,
sobe ao cimo da montanha,
em silêncio, queda mudo perante vidas, sortes,
náufrago num oceano de enganos,
nos remos que não apanha dum barco à deriva
sente-se dono de tudo,

perdido como fantasma rasga o corpo, afaga a alma,
agiganta-se como um Deus
nos espaços que são seus,
interiores não guardados lança versos como farrapos,
rimas que choram às vezes,
canta hinos, melodias,
semeia dores, dá alegrias, sonha traços que são revezes,
destinos inimagináveis,
bocados bem agradáveis,

silêncios que o Sol atiça na pira dum pensamento
poeta que denuncia,
clama com muita chama o que sente, o que o inflama,
também renega ausência, prostração
mente vazia,
intensa solidão... junto de quem mais ama,
permanente inquietação!!!...


07

A 15 graus, mesmo que a ternura
recubra a planície e no céu um poço
azul convide ao mergulho, eu recuso:
faz frio e o cigarro queima sem aquecer.

O sol não me dirige um raio,
e se oculta no silêncio do poeta.
Eu, fico aqui cismando sobre
a "pira que o sol acende"...

08

Sobre o poeta sempre arde
uma pira conhecida e desejada
faz-se Sol que acende a noite
consome trago a trago
o silêncio que inflama
a trajectória do termo



09

nu
S
no
para onde ir,
para onde
vamos?
...

numa única linha, um verso?
o poema inteiro.!.
(cavalo de cobrição)

numa única linha
(poema inteiro)
uma única linha inteiramente
verso:
numa única linha uma única linha
inteira é verdadeira
(vai fundo...)

a manhã amanhece
o poema aqui
ao sol
que
já nasceu
agora mesmo
(o poema inteiro)


10

Mas eis que incendeio o pó.
E o cheiro a ossos queima as linhas
e as certezas do futuro.
Sou o princípio antes da descoberta.
A negação do fim.
Mais que o desejo,
sei que em fogo,
sou o proto-embrião
do incerto e do Sempre.
Dou-te o nascer duma ideia.
De corpo e sangue
de ser e sexo
de palavra e poema.
Destas mãos que suspeitas
muito antes que elas existam,
não posso querer que as apertes.
Aperta as tuas e o teu querer
sou eu em chamas
que tu de ti
na minha negação inflamas

Indice de autores:

01 – Denilson Neves
02 – Maria José Limeira
03 – Andréa Motta
04 – Belvedere Bruno
05 – José Gil
06 – Manuel Xarepe
07 – Sonia Regina
08 – Luis Monteiro da Cunha
09 – Francisco Coimbra
10 – Carlos Luanda



Comentário do Moderador:

Ex que a chama se acende
na pira do sentimento,
faz-se poesia
transcende
o momento
e inflama o nosso dia

Obrigado amigos
jinhos e abraços

Luís

sexta-feira, 8 de junho de 2007

O guardador das águas



Prémio de Poesia Vítor Matos e Sá - 2004
Org. Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Edição: Mar da Palavra, Coimbra (Portugal), 2005


Ouve-se
ao longe,
o cântico de um galo.
Entre montes,
abrem-se,
em preguiça,
os olhos do sol.
Seus braços esboçam,
tímidos,
o abraço ao lugarejo.
Este responde.
Acordam homens e utensílios.
A terra aguarda o cultivo
ou a colheita,
os caminhos de água
reabertos.

Xavier Zarco

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Ensaio sobre a ruína

(Foto: Nelson Ribeiro)


O meu caixão há-de ser uma árvore centenária de casco duro e veios secos. Os homens hão-de avançar na floresta quando a hora cercar os ramos do sono e derrubarão o tronco no solo com o suor das estrias a rebentar no cinto nas calças. Ouço o timbre metálico da serra a rasgar o corpo da árvore velha e sei que a respiração é uma casa onde o tempo não se demora a mergulhar. Vejo-lhes as mãos latejantes sobre a madeira e reconheço as cidades que atravessaram para chegar a este pântano de gritos. Todos se abeiram do meu rosto com espelhos e dedos transpirados para averiguar o momento em que devem começar a chorar. Sou então lágrimas e nada mais do que a representação do silêncio alheio.

Um dia hei-de ser uma máscara de dor na cara dos meus peixes. Eles hão-de nadar às voltas no aquário e lamber cada minuto da minha infância em que cresci. A minha filha há-de encostar as narinas às borbulhas líquidas que sobem sem parar pelo vidro acima e ler as histórias que elas escrevem sobre mim. Todos estarão demasiado ocupados com o sofrimento enquanto ela regista o adeus que pronunciarei na água. Pela boca dos meus peixes é que hei-de morrer. Os homens virão da floresta como quem traz um navio antigo que há-de navegar dentro do aquário. A minha filha há-de tocar a superfície do futuro e pentear os meus cabelos que crescem do outro lado. Serei livre nesse infinito do tacto em que ela benze todas as bocas que ali suspiram. Todos farão luto durante meses estipulados e o preto descerá sobre os seus gestos como noite diurna.

Alice Campos


Este poema da Alice Campos foi premiado no XXII Concurso Internacional de Poesia de Outono, podem ver tudo em: www.giraldo.org.
Aqui ficam os nossos Parabéns à Alice!!

terça-feira, 5 de junho de 2007

O canto da sereia é bolero de Ravel

(Foto: autor desconhecido)


de Maria José Limeira, in "Ravel"

01

Quem é esta sereia
que me habita a cada insónia
e com seu canto lamurioso
desvenda meu avesso?

quem é?

Esta mulher oculta
por longas madeixas
que me despe a pele
me deflora sem pânico

em querer ora cúmplice
ora céptico
incendeia-me
víscera por víscera.

transformando-me num grande dilúvio
de desejos e medos.
Quem é?

02

Quem brinca no meu colo,
marinho cavalo,
em cristalino espasmo
do mar?

Ah, não só me navegues
[silenciosa e etérea]
ou voes, ao som de Ravel

Respira-me, sopra o tempo,
o vento transforma
e baila comigo

Há outros acordes no ar.

03

Bolero de Ravel toca as ondas que se quebram na praia em pedaços de luzes que me trazem de volta o teu olhar.

Em cada sonoridade do bolero é uma contrapartida com a sonoridade das ondas beijando a face da praia emudecida acarinhada pela natureza.

Sei, eu sei, você não está mais onde nossos olhos buscam sua presença, mas meu ser sabe que você sempre estará onde eu estiver.

Pois somos dois seres num só, somos de Ravel a música e da natureza as ondas do mar que beija minha face cheia de saudade.

Fisicamente você não estará onde o meu olhar irá pousar, mas estarei abstratamente onde você estiver me acompanhando pelos caminhos que meus passos irão traçar.

Minha luz se completa com a sua luz direcionadas a um só objetivo: trazer a quem nos ama a felicidade eterna.

Não desligue o som, deixe Ravel exprimir nossa saudade no Bolero infindável.


04

... como sereia inebriante,
loucura arrebatadora,
maviosa, sedutora
que nos reduz,
induz,
nos arrasta em paroxismo
surgem sons quase inaudíveis,
imperceptíveis,
que nos prendem,
nos captam,
se alteiam,
nos incendeiam,
nos assaltam
nos enleiam,

numa fúria que se solta,
coloca no meio dum vendaval
maravilhas incontáveis,
sentidos prostrados, rendidos,
como bola que carambola,
precipício abismal,
torrente fenomenal,
sonhos inalcançáveis,
Paraísos quase perdidos,
mente dum Ravel que é bolero,
como gosto, como quero,

quase me solto da Terra,
baralho corpos, pernas,
premeio dança que avança,
loucura dum infinito,
bênção dum Deus que gera,
tudo de bom, de equilíbrio,
prisão que prende qual teia d´aranha,
débil, forte fio,
que nos encanta, nos apanha,

fortes pancadas que soam,
acordes que vêm
que voam,
estremecem,
reparos que nos merecem
entrega, qual revoada
que nos reduz a nada,
sendo tudo,
bastante mais,
num Mundo
de criadores geniais,
auditores embevecidos,
maravilhados, estarrecidos,
confundidos,

oceano imenso em que me afogo,
labareda que me consome,
alegria, meu desgosto,
minha renúncia,
minha fome,
minha entrega, desistência,
arrastamento
em pensamento!!!...


05

Um perfume que emana
ondulante nesse corpo
de vento que inflama
O sentido inerte de quem
Escuta e chama a chama
do vulto que volteia e volta
não volta esvaído e prenhe

a graciosidade do gesto
no canto [onde a voz?]
o ritmo
a juzante do sonho
quase beijo
um toque dos corpos sudário
nos pés de sereia esse bole_
ro_manc(h)e inefável

todo o instante é e nada mais
que o grito inebriante
marujo e alucinação


06

para quem sabe surfar
no ar
o som é mar em ondas infinitas


07

o canto da sereia
prende-me ao mastro
desfraldando velas
com as mãos  só
de ouvi-la ao longe

a viagem começa
com o pressenti-la
no senti-la ao perto

versando esperanto!

08

Canto.
Canto triste.
Se é verdade que algo existe
para além dos mares
onde a sereia se esconde
(onde? onde?)
um barqueiro merencório descortina
navegando ao largo,
de rosto colado
ao violino,
marulhando ondas,
nos últimos acordes
do bolero
que Ravel não esqueceu.


09

era noite. a noite mais dia
naquela praia tropical.
o canto da sereia lançado
à lua num gemido de prazer
depois...
o movimento lento
dos nossos corpos
exigiu mais
ao som do bolero
e nasceu
a flor dos meus olhos.


10

Quando Maria nasceu
As estrelas e os cometas
Soltaram fogos no céu

Para completar o quadro
As sereias entoaram
O bolero de Ravel.


11

Uma aresta
arrepios...
a um de fundo
pernas
e
abraços

Ravel...
dois corpos
tintos
em
esmaecidas
carícias

12

Entre as pernas os sinos afloram estrelas
por entre sussurros numa escala musical
e teu corpo em ondas de espumas e ternuras
tocam a sonoridade dum tempo imemorial
como um bolero de Ravel crescendo
no incêndio da explosão final

Desse longe ó sedutora voz de sereia
a dança dos sentidos evolar-se-á na memória
como se fora uma pequena história
na minha mão cheia
…de grãos de areia

Para quê, feiticeira, segurar o sono da noite
prolongar a sede mais ardente do teu cântico
se despertarei definitivo
no parto lilás da aurora?


13

Ouvimos juntos o bolero de Ravel
seus olhos verdes cheios de significados.
Mas a musica era seu canto
seu feitiço consumidor.
E deixou-me em amarras
nas profundezas...


14

De que tens medo?
Da solidão?
Ou do sopro do vento
a lembrar-te na vastidão
dum lamento,
Só ter o uivo como brinquedo?...


Índice de autores:

01 – Andréa Mota
02 – Sónia Regina
03 – Osvaldo Pastorelli
04 – Manuel Xarepe
05 – Luís Monteiro
06 – Rogério Santos
07 – Francisco Coimbra
08 – Maria José Limeira
09 – Teresa Gonçalves
10 – Denilson Neves
11 – Andréa Motta
12 – Bernardete Costa
13 – Dalva Agne Lynch
14 – Carlos Luanda



Comentário do Moderador:

Amigos, penso que o objectivo foi
conseguido: falarmos de sereias,
a misticidade a que são inerentes;
e falarmos do bolero e da beleza
análoga que se descobre de ambas
as imagens, na forma poética e
despretensiosa, dos nossos sentimentos.

Espero que seja do vosso agrado esta
sequência dos poemas e formatação.

Obrigado

Luís

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Entrevista a Luís Monteiro da Cunha*

Por Vera Carvalho e Carlos Luanda

1.Luís, para além da poesia com que nos vai presenteando no grupo "Amantedasleituras" por onde mais mareia a sua escrita?

Luís Monteiro: De momento e apenas por manifesta falta de tempo, pela poesia e coordenação do grupo. Apesar de estar com dois romances em aberto: um no terceiro capítulo; outro que não passou ainda do primeiro, de momento não sei quando os conseguirei terminar.


2. Poesia - a partir de que momento se deu em si a descoberta?

Luís M. : A descoberta apareceu há relativamente pouco tempo e por um acaso do destino. Duas pessoas do meu círculo de amigos zangaram-se e não havia meio de se reconciliarem, apesar da intervenção de amigos comuns. Um dia, resolvi escrever o que me afogava a alma relativamente a essa questiúncula e fiz um pseudo-poema. Digo pseudo, porque não era poeta (pensava eu) e apenas escrevi o que sentia e lhes enderecei. A verdade é que através desse poema reconciliaram-se e agradeceram-me as palavras e a dedicação.

3. Luís, o poeta é sempre o olhar da diferença, da interrogação, da insatisfação e do desassossego.
Como é que o Luís se assume perante o mundo, como Homem, como Poeta?

Luís M. : Como homem, tento a conciliação possível em todas as relações, inclusive em guerras que não compro, mas a que não consigo ficar ausente. Como poeta, serei sempre um crítico fervoroso da humanidade. Abomino desigualdades. Todos nascemos iguais e nus perante o mundo, então porque existe tanta xenofobia, tanto ódio enraizado contra a diferença de pensamento, ideologia, credo, ou deformações?

4. Sei que há algum tempo atrás recusou a publicação de um romance seu. Hoje sente falta de uma maior divulgação do seu trabalho?


Luís M. : Por estranho que pareça, não sinto. Estou bem comigo próprio divulgando apenas no meu blog; nos grupos de leitura, como o Amante das Leituras e esporadicamente nos jornais nacionais e regionais. Agradeço todos os convites que me formulam para publicar, mas de momento não sinto que esteja preparado para esse passo tão importante, como a publicação de uma obra só nossa. Escrevo por puro prazer e sem obrigações. Considero cada livro como um filho e apenas o darei (se algum dia ousar) ao mundo, quando sentir que ele será perfeito. Tanto o mundo, como o livro.


5. Até que ponto acha que poderia um poema mudar o mundo?


Luís M. : Mudar o mundo, não diria tanto. Mas que pode fazer algo por ele, mediante o conceito do mesmo, isso sim, acredito!

6. Se de repente tivesse apenas o direito a uma frase, o que diria?

Luís M.: Inventaria uma frase, por exemplo: "Não queiras abrir os olhos de cegos, trabalha para que te sintam".

7. Já pensou num cenário futuro em que já não exista Humanidade, que papel teria um poema deixado ao infinito nesse contexto?


Luís M. : A humanidade ainda existe?! Bem, repare-se no legado dos poetas sobre a mitologia grega. Onde fundamentaram os historiadores a história da civilização grega, senão nas lendas, histórias, monumentos e cânticos (poéticos) que descrevem minuciosamente o seu modo de vida, crenças e labor diário. O misticismo dos deuses e como os adoravam; as Hespérides; os titãs; as ninfas; as musas, etc. Portanto, creio que todas as palavras escritas, têm o seu valor, são um legado para os vindouros. Sejam humanos ou não, tentarão decifrar o passado, saber da nossa existência, de como vivemos até à extinção e qual a razão desta ter acontecido.



* Luís Monteiro da Cunha, heterónimo literário de Luís Manuel Peixoto Monteiro da Cunha, nasceu a 30 de Agosto de 1962 em S. Mamede de Infesta – Matosinhos mas reside desde a infância na cidade da Maia.Escreveu nos finais de 2005, o romance "A Decisão" tendo sido convidado para publicação pela Papiro Editora, negando-se o autor por opção pessoal. Artigos e poemas seus, são editados semanalmente em diversos jornais e revistas portuguesas de âmbito nacional e regional, expressando a sua opinião sobre assuntos pertinentes que assolam o país, principalmente o seu concelho de residência.
Colabora em inúmeros sites na Internet, gerindo o seu próprio blog denominado "
Bufagato" onde publica alguns dos seus trabalhos, essencialmente poéticos.
Na lista "Amante das leituras" é moderador e responsável pelo desafio
da semana.


sexta-feira, 1 de junho de 2007

A Avena do Mundo

( Foto: autor desconhecido)

a avena do mundo arde nas palavras
mais singelas
da olaria dos homens

sente-se o rumor frémito de luas
pelas fímbrias
das marés reveladas pelas mãos

Xavier Zarco