Lançamento da Antologia Poética "Amante das Leituras"

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terça-feira, 23 de outubro de 2007

O Alfabeto dos Animais,

por Maria João Oliveira

Sofia conhece o "alfabeto" dos animais desde a sua infância. Decifra com mestria as palavras de amor que eles escrevem em código. Sabe que eles também possuem inteligência e sentimentos.
- O que é que tu tens, Sofia? Esse meu cão tem mau génio, ninguém se pode aproximar dele e só por especial favor, aceita uma carícia minha. Não te conhecia, mas abana o rabo, corre para ti, mete a cabeça nas tuas mãos, deita-se a teus pés! O que é isso? O que se passa?!...
- Não sei, Carlos. Olho-os nos olhos com todo o amor que sinto por eles. Só isso.
- Pois é – murmura o amigo, emocionado –, está aí o segredo.
Naquele momento, Carlos sentiu-se mais pequeno que um grão de areia, perante os olhos rasos de lágrimas da sua amiga.
Sofia trava, desde criança, uma luta titânica contra a indiferença e a falta de sentimentos. E como os monstros são incansáveis, o sofrimento dos animais não tem férias. Por isso, ela se gasta, há muitos anos, sem medir nem calcular, num tormento quotidiano, a matar a fome, a tratar feridas e pernas fracturadas de cães, gatos, pombas, etc., vítimas de maus tratos de toda a espécie. Sofre também com o drama dos animais de "estimação", mas a sua dor raramente consegue atravessar a dureza do granito, a não ser quando recorre aos organismos de protecção dos animais. Contudo, estes também já estão exaustos e sentem-se impotentes, sobretudo perante milhares de cães e de gatos, abandonados nas férias, pelos seus próprios donos e que acabam por ser abatidos nos canis municipais.
- Quantos deles – pensa Sofia – ofereceram calor e conforto, durante todo o ano, aos seus donos, quando eles chegavam a casa, cansados, deprimidos, irritadiços… A comovente alegria dos animais, naqueles momentos, merecia um hino.
E pensava também num lindo gato branco, peludo, cheio de charme, de expressão angélica, que se esquecia da cauda e dos ramos das árvores em que se baloiçava, mal via os donos chegar a casa. Corria ao encontro deles, com aquele ternurento miar de boas-vindas, os olhos dourados a brilhar muito, o coração prontinho para dar e receber… Chamava-se Sião.
Algum tempo depois, Sofia encontra-o, sem vida, junto de um contentor de lixo. Tinha sido apedrejado até à morte, numa bela tarde de verão, enquanto os donos saboreavam gelados e tomavam banhos de mar.
Por vezes, a alegria de estar com os amigos arrefece dentro dela, em redor de uma mesa festiva. Não é fácil assistir ao entusiasmo das pessoas, perante o sabor da "bela chanfana" ou do leitão assado, com a boca aflitivamente aberta e uma laranja entre os dentes. Lembra-se do artigo 13º ("O animal morto deve ser tratado com respeito"), da Declaração Universal dos Direitos do Animal. A dor e a angústia que o animal sofreu são bem visíveis, mas só ela se apercebe disso. E o odor que ele exala excita as pessoas que acabam por esquartejá-lo com insuportável prazer. Sofia olha os amigos em silêncio, come uma batata frita para disfarçar e sai discretamente para o jardim.
Por vezes, fica exausta e sente necessidade de ser como os outros, de soltar o grito do Ipiranga, de adormecer no rio do esquecimento… No entanto, como ave da esperança, ela continua a semear nos seus alunos a compaixão, a ternura, o amanhecer de um tempo novo. E fala-lhes do autor de "O paraíso dos animais", o poeta basco Francis Jammes , porque ninguém como ele se compadeceu tanto do seu sofrimento. Ninguém como ele nos faz estremecer ao falar da "luz profunda e suavemente triste que existe no olhar dos animais", ao lembrar os dromedários apertados como sardinhas enlatadas, numa barraca de feira, os frangos transformados em prémios de rifas e arrastados loucamente por uma roda, em constante movimento, com um leitão apavorado no meio, o vitelo "para engorda", separado da mãe, uma semana depois de nascer, encerrado num caixão às escuras e submetido a monstruosas torturas, para engordar mais de um quilo por dia …
Quase no fim do ano lectivo, os alunos do 11º ano apresentaram uma dissertação sobre experiências médicas com animais, em todo o mundo. Ao ler a dissertação do Telmo Raimundo, Sofia chorou. Tentando extirpar o cancro da indiferença, ele procurou levar os seus potenciais leitores a pensar, a sentir, a agir… E falou das cordas vocais cortadas a cães submetidos a experiências, para deixarem de ouvir os seus ganidos, apontou o dedo às universidades onde se corta a cabeça a animais, se abre o seu tórax e se lhes retira o sangue até à paragem cardíaca. E não esqueceu o Método Draize que introduz no estômago de cães e de roedores produtos de limpeza, pesticidas, cosméticos, até ao seu rompimento, que imobiliza coelhos conscientes e os impossibilita de fechar os olhos com substâncias que provocam infecções, hemorragias, cegueira. Raspam também os pêlos dos animais, retiram camadas de pele e colocam substâncias corrosivas sobre a carne viva. E o Telmo falou também dos métodos alternativos à utilização de animais em pesquisas, que já vão sendo postos em prática, embora se verifique ainda uma grande falta de sensibilidade por parte de alguns cientistas. Dizia ainda o Telmo que a actividade científica não pode estar acima das questões éticas. E citava Mia Couto, escritor que muito admira: " O mundo é uma pegajosa teia, onde uns são presas e outros predadores".
Nos jornais da sua cidade, Sofia tenta salvar a dor dos animais, da indiferença e do esquecimento. E fala dos que estão ameaçados de extinção, dos touros ensanguentados na arena, dos que sofrem nas mãos dos seus próprios donos, dos agricultores, dos cientistas, dos caçadores de peles que matam focas à paulada, das crias que são esfoladas vivas e se arrastam num choro pungente…
Sofia chama também a atenção para o sofrimento das pombas da cidade que aparecem no seu terraço com as patas fracturadas e os dedos dilacerados por armadilhas, ou vítimas de venenos que lhes roubam o sentido de orientação e a coordenação dos movimentos. Tentam desesperadamente voar, mas embatem nos edifícios e caem no chão, onde ficam, durante muitos dias, a debater-se até à morte.
Num dos jornais que Sofia assina, uma responsável da "SOS Animal"denunciou: "A perversidade humana não tem fim. (…) Os animais são espancados com paus, enrolados em arame farpado, atirados de pontes, afogados, queimados, mutilados para rituais satânicos e até vítimas de abuso sexual."
Por tudo isto, Sofia afirma que, para se divertir ou em nome da ciência, da economia e do espectáculo, o homem trata estes seres indefesos com ilimitada crueldade. Está a anos-luz da ética do antigo Egipto, por exemplo, que fomentava a responsabilidade para com os animais. Toda a falta de respeito era considerada como pecado. Sofia não esquece uma inscrição numa pirâmide que justificava o falecido rei "(…) Não existe qualquer queixa contra Fulano por parte de um ganso / Não existe qualquer queixa contra Fulano por parte de uma vaca" (o ganso e a vaca eram os representantes do reino animal).
Ao pensar no poeta basco Francis Jammes, Sofia sente que o seu fardo se torna mais leve. E a sua gratidão é orvalho sobre aquela longa noite de pesadelo. A dor que ele sentia perante um animal maltratado era tão parecida com a sua!… Já fazem parte de si estas palavras que o poeta , um dia, proferiu: "(…) Se não fosse o respeito humano, eu ter-me-ia ajoelhado perante tanta paciência e tantas torturas (…)".
Um dia, Francis Jammes convidou todos os poetas a acolher os animais torturados no seu coração. Franz Werfel escutou o seu apelo. Por isso, Sofia devora a sua "Ode aos animais sofredores", como quem devora um fruto maduro depois de uma fome de séculos. Continua a pedir aos seus alunos que acolham todos os animais torturados no seu coração. E, aos poucos, eles vão aprendendo a descodificar o maravilhoso "alfabeto" dos animais.

Um comentário:

Filipa Rodrigues disse...

Cara Maria João,

só hoje li este texto sobre os animais... bem, fiquei comovida, porque tenho dois em casa e trato-os como se fossem minha descendência.

Gostei deste seu texto...
Beijinhos
Filipa