Lançamento da Antologia Poética "Amante das Leituras"

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terça-feira, 31 de julho de 2007

Todo o acto de escrever / É uma experimentação.

de Luís Monteiro da Cunha

01

Se o ato de escrever
É uma experimentação
Escrevo
Saudades, Luís Monteiro da Cunha
Porque os amigos
Moram em meu coração.


02

As palavras adormeceram em mim
serena é sua respiração
em seu sono profundo
Olho a quietude do rio sob
a canícula dormente do estio
e um filme verde de incêndio e dor
no outro lado do mundo
impede o meu regresso ao poema
Fica-me este labor de consoantes e vogais
uma arquitectura de fonemas
nascida da experimentação mais
um exercício de raiva
antiquíssimo método de chorar no silêncio.

03

Não quero me exibir em dialética,
Tampouco me entregar à fantasia,
Mas... Será o poema cria poética,
Ou num mundo de rimas preexistia?

Será o poeta um mero montador,
Lírico pescador da poesia
Particionada pelo Criador
Na chama inspiradora que irradia?

Se assim for - Que metáfora mais bela!
O poeta é um catador de versos,
Que encaixa em rimas na estrofe certa.

Mas para ser poeta, não esqueça:
Não basta garimpar nestes recessos;
Há que saber montar quebra-cabeça.


04

no espaço aberto da imaginação
existe uma nascente profunda
escrita no rio do pensamento
que transborda ao coração

células impossíveis de conter
igual sede que temos de beber
o amor de cada palavra criada
escorrendo entre dedos
horizontes de afagos.

interdição às sensações
emoções realidades e sonhos?
Não.!


05

espere
experimente
exprima-se
especule
exibindo
espiritual
espectáculo
exuberante
esperando
extasiar-se


06

Não desisto de ti
Que és nome silencioso
Que madruga e veste
As minhas mãos.

Algo mais intenso e perturbador
Mergulham sorrisos a alma só
Impulso corre as veias solidárias
Este auge do ser implacável
Compra-me o espírito sem dó.

Os olhos observam a paisagem
Despidas as mãos, sem palavras,
Vivo desse impacto
Sem sonhos refugiam-se as estradas.

Não desisto de ti
Sem ser nada ou ninguém
Construí um rio de palavras
Para adormecer nas mãos de alguém.

Impulsionas-me, sugestionas-me,
Questionam-me as frases devaneias
Que são o meu fôlego silenciado
Desejo de aventura, enamorado.

Criei-me e dei-me ao teu esplendor
Mais altivo que o dos anjos,
Senti-me uma criança a acordar
Braços abertos abraçam o mar.

Não desisto de ti
Que és nome silencioso
Que madruga e veste
As minhas mãos.

Chamem-me poeta...

Chamem-me o que quiserem...

Sem ti, eu sofria...
Sem ti padecia...

Morria?...


07

Levou-me para um quarto de hotel barato
Fechou a porta da minha timidez e abriu a da nudez
com a mão, com a boca com o que eu escrevia.
Havia uma janela virada para o corpo donde o calor saía
para uma parede branca nos olhos, iluminando-os
que pagou a conta do quarto, a comida dos filhos, a virgindade
mas os vagidos de prazer do acto no quarto de papel oferecia a quem os lia.


08

experimentar
o acto de escrever
exprime a experiência
humanamente + profunda
adição múltipla
de todas as operações
o acto da escrita revela-se
plenamente X sem conta
tudo aqui conta
se cada verso vive
a mais completa luta
para chegar à revelação



09

... o acto de escrever, em si,
é comunicação, entendimento
entre seres que julgam,
introvertem, partilham,
comungam
dessa habilidade com um fim,
experimentando, como diversão,
enovelando termos novos, confusos,
busca incessante duma definição,
clarão mais pertinente,
rasgo raro, luminoso,
estrépito
som de vulto, fragoroso,
novel forma de manifestação,

descoberta que se tem, temporária sensação,
sinais trabalhados na proveta do pensamento,
conversão em traços, espaços, vírgulas e pontos,
imagens vividas em profusão,
acontecimentos que nos entram pelas janelas que temos,
olhos abertos em permanência,
aglutinação depois da afluência,
esmagamento em almofariz
do que se vê, do que se ouve, do que se diz,

fértil imaginação,
sem fabricação extemporânea,
casuística, oportuna,
descrição que aflui, nos esmaga porque rói,
se traz guardada, funda,
algo estranha, profunda
necessidade que chaga, fere,
amolga, dói,
incomodidade permanente,
que se transforma, num repente,
dádiva de tanta gente,

aventura que se vai contando
na escrita que se alinha,
nos sinais com que se traça
tudo aquilo que passa,
experimentando,
num acto que se torna hábito,
grafismo que se torna escrita,
imitando, sentindo
manifestação invicta
estando sentados, fugindo,

quem cria, depois de criado,
evolução que nos foi dada,
por quem desdenha,
não sendo amado,
mortal perdido nas trevas
numa busca insana, frutuosa,
sorte incerta, desditosa,
contributo inestimável,
no campo de tantas artes,
recantos humildes, tantas partes,

na ponta dum pincel,
nas linhas de qualquer papel,
no bico aguçado dum cinzel,
na carne que se transforma
em alimento, como norma,
no vegetal que se multiplica,
na ave que se mata, come,
no peixe que se escama, se deglute,
se ingere,
nas vestes que nos arroupam,
nos enganos que nos propomos,
fazendo aquilo que somos,

nos mortos que se não poupam,
nas guerras ferozes, bárbaras,
guerras com arte, matanças,
quantas novelas, mudanças,
acumulações, simples aparas,
existências que deixam marcas,
riscos, arabescos
diferentes, escurecidos, frescos,
graciosos, ridentes, cinzentos,
passagens, pegadas... momentos,

acto, como experimentação,
alocução inebriante,
incitamento de quem lê,
escritos mais pensados, escusos,
não poéticos,
disfarçados pelo mal que encerram,
hipotéticos,
quando gritam, quando berram,
provocando agitação,

confrontos medonhos, perversão,
enganos na multidão,
não são do coração,
espécie de maldição
adulterando o que há de belo
gerando ódios, confusão,
antípodas de qualquer anelo!!!...


10

Escrevo p'ra não perder o traquejo
p'ra não deixar acumular esta maldita
ansiedade que tenta me domar

Brinco com as palavras
quando desconcertantes imagens
invadem o pensamento

Se ponteio ou pontuo
nenhuma diferença fará
quero apenas garatujar.


11

numa tentativa de contornar as palavras da voz
escurece-me a tinta
que goteja da pena
é negra
oculta-me o entendimento

castigo a minha ambição
aprimoro o traço
ardo de ânsia
mas a gota continua a pingar e
é negra

derrubo-me infrene sobre o papel
e esmago as palavras
sou ruína sem entender
o que queria
ter dito


12

Correm leves as letras breves
sem cuidar do meu intento
Uma daqui,
outra do vento.
Outra do sangue que nas veias ferve.
Não sabem mais que estar caladas
Quietas, firmes,
Arrumadas,
Em mortalhas de silêncio.
Sabem de si só o momento
criado na ponta do querer.
Um acto-vontade congelado.
Eternamente condensado
que embora lido, ressuscitado
é o somente o instante pensado
Distante e criado ao escrever


13

que corram céleres, as letras
palavras, sílabas encarnadas
não pensadas, escritas

doídas ou alegres, se ditas
no frio ou no quente
[fora da mente]
ainda que ensaiada,
a vida


14

Foge-me o sossego
quando, às vezes, vejo
palavras à esmo
contando segredos

É que sou arremedo
de tudo que escrevo
não conto segredo
mas sempre me vejo


15

Lusitana palavra
Une amor, amizade
Imagem trabalhada.
Zelo, dedicação.

Carimbo cunho
Únicamente mão
Não deixa o desânimo
Habitar o coração...
Amante da palavra!!!


Autores:

01 – Carmen Neves
02 – Bernardete Costa
03 – Denilson Neves
04 – Ísis
05 – Francisco Coimbra
06 – Paulo Themudo
07 – Ana Maria Costa
08 – Francisco Coimbra
09 – Manuel Xarepe
10 – Andrea Motta
11 – Vera Carvalho
12 – Carlos Luanda
13 – Sónia Regina
14 – Denilson Neves
15 – Ísis



Amigos, espero que vos agrade esta versão final
do desafio semanal.
Obviamente, esta semana não comento o teor do poema.
Delego-vos essa tarefa.

Obrigado a todos.

Luís Monteiro da Cunha

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Fogo Cruzado,



(Foto: Autor desconhecido)

de Maria João Oliveira

A bambolear-se nuns setenta anos bem abastecidos de rugas e de sol, limpa a boca com as costas da mão e anuncia:
- Olha, vou-te bater, ouviste?! Vou-te bater! Anda cá! Olha, a avó vai peneirar! Canta comigo: "peneira...peneirinha... peneira... peneirinha..."
- Não quero!
- E melão, queres?
A criança, que já não vai em cantigas, salta como uma mola e estende a mão para uma talhada de melão,fresca como a brisa que brinca nos seus cabelos.
- Porco, já tens o melão cheio de areia! - grita, com as mãos cravadas nas ancas e a cabeça bem erguida,estratégia militar a que recorre, para melhor disciplinar a sua criança. Esta riposta aos guinchos, porque afinal ela "tem querer" e é preciso muita paciência para aturar os adultos.
- Eu berro, berro, farto-me de berrar, mas não consigo fazer nada dele! - desabafa a avó, despenteada e vermelha como um tomate, sem reparar na beleza das ondas e no papagaio de papel que saúda o mar, com as cores do arco-íris.
É certo que este papagaio nunca se constipa nem diz o nosso nome, mas também é belo nas mãos da criança que o olha, embevecida.
- Esta manhã, "alevantei-me" e já ele estava: " ó mãe, ó mãe, quero fazer chichi! Não há quem sossegue com este miúdo!
- Tu berras com ele e, logo a seguir, beijas o puto.
Em que é que ficamos, afinal? - questiona o filho mais velho, com ares de quem já deu uns mergulhos nos mares da psicologia infantil.
- Põe a boina na cabeça, estropício! - berra a avó.
- Olha o balão, olha o balão, não o rebentes! - grita a mãe
- Vai buscar a bola, pá! - ordena o primo.
Com as pernas ainda trôpegas, a criança abraça uma bola do tamanho do mundo.
- Upa, filho! Não podes com a bola? - pergunta a mãe,tentando dar uma ajuda.
- Se cais com a cara no chão cheia de creme, ficas lindo, ficas! - avisa a avó.
- Vamos à bica, Flávio? - convida o pai.
- Estás a fazer uma análise do lirismo migratório? -brinca o Carlos Oliveira, meu marido.
- Gosto de escrever, junto do mar, como sabes, mas jánão tenho papel...
- Isso não tem importância, porque tu até és capaz de escrever numa folha de alface...
Neste momento, chega o almejado silêncio. A família tinha ido à bica.
Vinte minutos depois...
- Dá a mão ao primo, Flávio! - ordena a avó.
- Eh, caramba! Manda a bola cá p´ra fora! - desafia o primo - caraças, a bola foge! Corre atrás dela!
Dá-lhe um pontapé, anda! Chuta prá qui!
O Flávio enche os pulmões de ar e dá um pontapé eusebiano na bola grande.
- Boa, pá! É assim mesmo! Ainda hás-de ser um craque nisto! Ter futuro, pá!... Um Figo!
O Flávio solta uma gargalhada que me refresca por dentro.
- Agora vais fazer ó-ó, ouviste? - ameaça a avó, naquele momento. Lá se vai a alegria do jogo, a alegria de abraçar a bola multicor, a alegria de transportar as sandálias no carrinho de plástico...
Fechar os olhos a este areal reluzente e a estas ondas provocantes, é um pecado que brada aos céus. Por isso, as gargalhadas do Flávio depressa se transformam no berreiro infernal que estou a ouvir.
- Bolachinha americana, pró menino e prá menina! Tenham calma! Não chamem todos ao mesmo tempo! Quem não tiver dinheiro, não se preocupe, não há problema. Não come e pronto!Cumprimentos lá em casa! - exclama o "homem das bolachas", baixo e gordo, sorriso aberto e pele bem tisnada pelo sol.
- Só cá faltava este! - resmunga a avó do Flávio.
- Eu quero bolachinhas daquelas - implora a criança com grossas lágrimas nuns olhos verdes de fazer inveja ao nascer do sol.
- Vais mas é "dromir" e pronto! - grita a avó, mais uma vez - olha, dou-te um "chocolá", se tu "dromires"a sesta.
- Eu não quero dormir! Não quero! - berra o Flávio,dando um pontapé furibundo na caneca de chá da avó. Na verdade, os adultos, por vezes, são uns desmancha-prazeres e uma criança nem sempre consegue ter paciência para os aturar. Saint-Exupéry teve razão, ao dizer que " as pessoas grandes (...) não conseguem compreender nada sozinhas, e é cansativo,para as crianças, estar a toda a hora a explicar".


Análise Literária, por Maria João Limeira
Este texto "Fogo cruzado", de Maria João Oliveira, tem tudo para ser Literatura (e das boas!): ritmo, movimento, dramaticidade, palco, platéia, na arte que às vezes é circo, em outras, ópera, na maioria dos casos, novela das oito, numa hora, patético e noutras,ternura...É uma Prosa boa que enfoca os conflitos de gerações,uma de terceira idade, outra de tenra infância.A autora combina bem os estereótipos na construção da história, misturando amor e lágrimas, arrancando da platéia ora risos e, em outras vezes, indignação. Mas tudo na maior alegria! E mais: ela mesma, Maria João Oliveira, é também personagem. É um texto criativo, onde o processo pedagógico se realiza às avessas, como no livro de Saint-Exupéry, no qual se inspira.Um ótimo texto!

terça-feira, 17 de julho de 2007

"Sei de pedra como sei de deus por isso, tropeço.",

( Foto: Autor desconhecido)

de Iara Maria

01

Nem sempre se vê a pedra
invisível
seu toque maltrata magoa
se soubesse de seu lugar
saberia também desse deus
invisível
mata se apregoa!

02

o pó de ar na folha da pedra
a mesa oval, a cobertura do
Mosteiro, fresco silêncio
aguarela em pedra, Deus


03

este é o pecado que resta
a maçã derradeira do pomar
aguardaria a serpente
se tempo houvesse mas o desejo
é semear caminho na memória
e esta maçã que há a provar
é parte do por quê de caminhar

04

(adivinho / adivinha)
se sei onde está a pedra
não tropeço e sigo,
sabendo como é Deus
não (o) procuro!
agora (o) sobrenatural
faz-se parte da arte
e não há poesia
sem me sentir divino!...

05

Caio em mim.
Não em pensamentos.
Não em auroras das revelações do espírito.
Não!
Caio em mim
sem que um pensamento viva ou morra.
Caio em mim:
sem pressas
nem amanhãs.
Nem ontem
nem tempo....
Apenas o Agora: o sentido do infinito.
Sou....
Particula do Nada.
Onde nada começa.
Intemporal
onde o meu descansar de Deus
No Tempo sem tempo
Tropeça....

06

se caio em mim
agora, hoje,
na pedra o futuro,escrito,
no silencio a visão,
clara, do tudo,onde nada
recomeça
flui, retoma
como a água fresca,
caída da fonte, reinicia
do colorido das pedras
de seixos rolados
como eu, sei
como sei de deus
tropeço, bambeio
mas não caio.

07

Conheci a pedra primeiro
depois... amei deus
por amar a pedra amei deus
e na perda da pedra
tudo aconteceu!!!
A (deus)

08

... algo indefinido, imaterial,
névoa que se não dissipa, esparge,
indelével num espaço que abriga,
força maior que não lobriga,
pedra tosca no caminho
que contorna,
não tropeça, adivinha,
protecção sempre presente,
intuição que avisa,
obstáculo que evita,
levita,
divindade maior que sente,
estando ausente,
acaso que pressente
num instante, num repente,

local de perigo iminente,
ciclo reversível,
queda do espírito, da mente,
corpo que não rasga no duro asfalto,
contacto permanente
da espiritualidade
dum Deus que protege
quando age na voragem que consome,
irrealidade,

abstracção que bloqueia,
incendeia,
não tropeça
se contorna,
quando adorna
feérico na crença,
quando pensa,
pedra angular que provocaria queda,
culpa que pesa,
cometimento menos feliz,
imaterial, indefinida,
como névoa que esparge,
assim age,

espaço curto que diz,
respeito profundo por quem sente
algo maior na vida,

falha grave,
peso constante que menoriza,
inferioriza,
sangra na interioridade que desconforta,
quando aporta
na baía do sossego,
partilha
réstia de pavor, de medo,
intimo refugio, algum segredo!!!...

09

Quando em certa época
decidi virar cigana,
percorri meio mundo.
Fui poeta, cantora...
Amei loucamente,
briguei com sofreguidão.
Nada fazia
que fosse
pela metade.
Agora, tudo me soa
inverossímil.
Parece fruto
de minha imaginação.
Quem sabe preciso
urgentemente
de psicanálise?
De regressão
a vidas passadas?
Sinto-me multifacetada.
Busco um rumo
na minha estrada...

10

Sei de pedra.
Como sei (também) de Deus,
por isto - tropeço.
Por saber de pedra
ou por saber
de Deus?

11

Irriguei a boca com ar
afundei o céu
no meu corpo
fui para o infinito
cumprir pena que sabia.


Autores que participaram no desafio:


01 - Bernardete Costa
02 - José Gil
03 - Xavier Zarco
04 - Francisco Coimbra
05 - Carlos Luanda
06 - Sónia Regina
07 - Ísis
08 - Manuel Xarepe
09 – Belbedere Bruno
10 - Dalva Agne Lynch
11 – Ana Mª Costa

* Moderado por Ana Maria Costa

Entrevista José Nascimento Félix *

por Vera Carvalho e Carlos Luanda
1. José Félix, falar de poesia e encontrar tempo para ela na influência da
globalização, no confronto com tanta insensibilidade, parece-lhe precioso ou milagroso?

José Félix
– A globalização não me preocupa; nem um pouco. A globalização é o corredor que ficou mais curto para vermos a última porta. Sempre se lutou para que a humanidade ficasse cada vez mais perto. Porquê lutar agora contra esse objectivo, pois continuamos a querer ficar mais perto dos afegãos, dos habitantes da Mongólia, dos resquícios habitantes do Camboja que dizem algumas palavras em português dos séculos XVI e XVII e cujos membros se chamam de Silvas, Alves, Francisco? Não! A globalização é uma consequência do desenvolvimento tecnológico dos equipamentos da informação e, por isso, também à poesia respeita.
Não se pode dizer que haja «confronto com tanta insensibilidade». As sensibilidades são outras, são diferentes e não digo que houve uma evolução ou um retrocesso: são diferentes, e pronto. Será sempre precioso ou milagroso falar de poesia e do(s) confronto(s) que ela causa. A poesia é, em si, já um confronto entre diferentes personagens: a criação de um poema é como o nascimento de uma árvore através de uma semente minúscula.
O tempo em poesia não existe. A poesia é. Pode não haver oportunidade para a colocar num texto porque não se tem a capacidade literária para isso ou porque dá trabalho fazer a composição das palavras escolhidas ou das palavras que se nos oferecem para o poema. A poesia está intrinsecamente ligada à evolução da humanidade. Evolui-se porque há poesia, porque se pensa poesia, porque se deseja poesia. O homem que inventou a primeira letra de câmbio para o comércio internacional foi um poeta.


2. Fazendo uso das suas palavras,

(…)não que eu encerrecada letra em cada quadrícula;não conjuga com a minha maneirade ser.desordenado, intuitivo e, até, porquepareceria que cada letra gritasse o somque lhe pertence num quadrado de ferrocomo se fosse uma prisão - as prisõessão incompatíveis com as palavras,conjuntos de letras feitas significantes,à espera da boca de quem lhes queira,na pronúncia, tomar o sabor original(…) (in poema "A minha caneta é azul"),

acha que a poesia é apenas o veículo do sentimento, sem obedecer a regras, ao ritmo ou uma arte literária com as normas da arte?

J.F. – Se têm lido muito do que eu tenho escrito em livros, antologias, páginas na Rede e nas listas de discussão verificam que no meio de uma certa desordem, até caos, há implicitamente regras e uma constante procura do ritmo e da musicalidade de um verso. O poema referido, escrito no ano de 1999, creio, é mais um manifesto acerca do que eu pensava, e, ainda, penso, do modo de criação poética. Não faria sentido colocar e / ou transmitir aquelas premissas num soneto ou numa quintilha. Isto, por um lado. Por outro lado não vejo que um soneto, que obedece a um esquema formal bastante rígido seja cerceador da liberdade poética. No soneto, nas quadras, nas redondilhas, maior e menor, nos vilancetes, podemos dizer e transmitir o que quisermos sem que a liberdade discursiva sofra qualquer dano. Tenho poemas com as estruturas mas diversas e nunca me senti apertado na cintura ao fazê-los.
A poesia como arte, pois não está directamente relacionada com a sobrevivência ou com a reprodução, transmite sensações e emoções, verdadeiras ou não, e não há normas para a produção artística. Quem confere uma certa "normalidade" são os leitores, críticos, que no conjunto da leitura da obra de um autor, vêem nela um «estilo», uma "norma" para classificação futura. É assim que se criam os «ismos» possíveis em tudo e, também, na arte que é, ela própria, um nome definitivamente vago.
De então para cá, desde a escritura do poema «a minha caneta é azul», a minha construção discursiva tem tido a mesma atitude pela diferença, pela experimentação contínua da linguagem numa procura constante do imo da palavra, da frase, do texto. Hoje só escrevo com tinta preta. Amanhã é possível escrever com tinta verde, amarela.


3. Acha que "há duas coisas na vida de que vale a pena escrever: amar e a morte".
Ainda se recorda do seu primeiro poema, do tema, do porquê da escrita?

J.F. – O meu primeiro poema, do qual a minha memória tem o fumo possível é sobre um pássaro que pousou num galho de goiabeira; um poema escrito aos 15 anos e com os ingredientes de um jovem daquela idade.
A escrita é uma passadeira entre dois estádios: às vezes comungam outras vezes não. Quase sempre não comungam.
Vivi sempre em exílio: exilo físico e exílio não físico. Recordo-me de fazer as orações a Adonai, à tardinha de sexta-feira numa casa, em Luanda, cujo proprietário era o dono de um dos mais famosos restaurantes e cervejarias da cidade: Dario Aleksandr Dukasky, um judeu dos puros, duro, ortodoxo, onde os meus pais iam com frequência. Permanece, e, ainda, depois da morte, um respeito muito grande por quem, no abrigo da sua casa, acolhia os membros de uma nação fustigada pela incompreensão dos países árabes, e por aqueles que nunca lutaram pela pátria que é hoje o Estado de Israel. Foi o início de um exílio já feito no núcleo familiar e que depois foi transportado pela via da escrita para outros exílios construídos através da palavra. Um poeta é um exilado da norma porque para o ser deve construir o seu próprio território.
Amar e a morte. Só vale a pena escrever sobre estas duas coisas. "Amar" é uma construção de gestos pessoais e intransmissíveis. Não falo em amor porque é um conceito muito vago e que vai mudando consoante o tempo. Amar! Sobretudo, amar! Aqui reside o meio de caminhar. A morte é a finalidade de todas as coisas. O fim. Zero. Embora o número "zero" se assemelhe a uma semente e uma semente seja a renovação de qualquer coisa: uma árvore, um arbusto, uma erva daninha. É o pensamento metafísico da morte. É sobre ela que escrevemos.


4. Para quem nunca teve a vivência prática da poesia, muitas das definições podem parecer assunto quase místico. Gostaria de deixar algumas palavras para os escritores que estão a iniciar agora?

J.F. – A prática da poesia. A prática da escrita. Ambas são íntimas. Não se pode desligar uma da outra. Escrever. Escrever. Escrever. Ler. Ler. Ler. A leitura e a escrita são irmãs. Escreve-se porque se lê e lê-se porque se escreve. A leitura dos clássicos é muito importante. O pregão constante do que é «moderno», e de uma forma errada, penso, afasta os jovens dos clássicos, esses, sim, plenos de modernidade. Alguém pensa que não é moderno o soneto de Camões onde diz "mudam-se os tempos mudam-se as vontades"? Isto não é moderno? As duas quadras que compõem o soneto estão actuais. Isto é que é ser moderno. Foi escrito no século XVI! Ler os autores gregos, latinos, os autores da Renascença. Para se ter um bom conhecimento da escrita em português é necessário ler Eça de Queiroz e o Padre António Vieira, portugueses, e autores brasileiros como Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa.


5. José Félix, a excelência do Mestre que dele faz nascer Escola, também o encerra num invólucro onde muitas vezes fica refém dos seus próprios horizontes e excelência. Sendo um inovador constante num constante romper e renascer, não teme que a sua escrita possa fazer Escola e que assim de alguma forma acabe por aprisioná-lo e limitá-lo?

J.F. – Esta questão é interessante pois encerra uma pretensa contradição. Se fico refém dos meus próprios horizontes não posso ser "inovador constante num constante romper e renascer". Ora, eu não estou num invólucro nem estou refém de qualquer horizonte. Eu não tenho horizontes, se bem que o horizonte é um conceito com uma grande mobilidade. Basta caminharmos para qualquer direcção para perceber que o horizonte muda de longitude e de latitude. Mesmo assim não me sinto manietado naquilo que pretendo fazer com a escrita: experimentação. A Escola é a liberdade da imaginação transposta para a escrita. A inovação pode ser feita com as velhas ferramentas, sendo a escrita a ferramenta principal: é o cinzel, o martelo, a colher do barro, a água, o molde o objecto moldado; é o espelho e o reflexo, o côncavo e o convexo, o "se" e o "és". A escrita é o dentro e o fora, o centro e a fuga. A Escrita não é uma prisão!



6. Quem nasceu ou viveu em África trá-la e ao seu ritmo, para sempre, no coração. Crê que África, tal como na música, é também mãe de toda a palavra, ou pensa que na génese ambas seriam o mesmo?

J.F. – Sabe-se que o homem desenvolveu-se em África, na costa oriental, na região que é hoje a Tanzânia e o Quénia até surgirem outras provas documentais fossilizadas. Sendo assim, também a palavra nasceu aí. África é o continente da desgraça. Não entendo porque se trata o continente africano como uma terra à parte depois de mais de cinco séculos de colonialismo e quase cem de neocolonialismo. Se a Europa e o resto do mundo gosta tanto de África porque se continua a espezinhar os africanos, a humilhá-los e a dar-lhes migalhas quando a sua matéria-prima alimenta os bolsos dos empresários europeus.
Em África, mais precisamente a África subsaariana, a música e a palavra andam sempre unidas. A não ser por influência europeia, nas línguas naturais bantos não há rima. São línguas de uma simplicidade tal que não precisam de artigos partitivos, pronomes e o plural dos nomes lembra o que acontece com o latim. Basta ter um conhecimento primário do crioulo de Cabo Verde para perceber a simplicidade comunicacional de uma língua híbrida como o crioulo onde o masculino prevalece.
Eu digo, sim, que África é a mãe de toda a palavra e de toda a música. E não só. África é a mãe de todas as artes. Pablo Picasso inspirou-se nas esculturas e desenhos africanos para desenvolver o cubismo. Claude Debussy ouviu música africana para se tornar o primeiro autor clássico da era moderna. Ouça-se "La Cathédral engloutie" que é uma obra-prima.
E, já agora, como um complemento, leia-se o poema com o mesmo nome e com aquele fundo musical, de Jorge de Sena.

7. Como encara o facto de a palavra ter sempre um valor transitório e finito, (um jogo entre todos os Eros e Morte?). Não correrão os poetas atrás da magia quimérica dos sons da imortalidade?


J.F.
– Não! A palavra não tem um valor transitório. A palavra, desde que seja dita, lida, ouvida por alguém, tem vida, transforma-se, metamorfoseia-se nos significantes e nos significados quando corre séculos e milénios. Não é por acaso que há especialistas que tentam, através da História das mentalidades, retirar o sentido da época nas palavras que lêem e decifram. O poeta é, ele próprio, um alquimista. Procura a transmutação do «ser» pela palavra, pela ideia intrínseca de um verso, um poema, um texto.
Não deixa de ser um jogo entre todos os Eros e Morte, mas, apesar de um texto estar perdido numa estante qualquer de uma qualquer biblioteca, mesmo labiríntica como a de Borges, um dia, num simples dia, um olhar pousará nas páginas e o poeta renascerá das cinzas, mesmo que algum índex queime as capas desse livro.·

8. A sua formação em História deve tê-lo posto perante a sensação de máquina do tempo que se tem quando se lê um poema escrito à distância de milénios.Quer partilhar connosco algumas breves passagens de poemas imemoriais que o sensibilizaram definitivamente como homem e poeta?
J.F. – A poesia do Antigo Egipto é muito interessante. O "O Livro dos Mortos", principalmente o capítulo 42 quando o defunto pretende tomar as formas de Ré, invocando a protecção dos vários deuses é sublime.

"[…]
Eu sou Ré, aquele cujos favores são duráveis.
Eu sou o criador que está no tamariz.
Se eu estou intacto Ré está intacto, e vice-versa.
Os meus cabelos são os de Nun.
O meu rosto é o de Ré.
Os meus olhos são os de Hathor.
As minhas orelhas são as de Uepuanet.
O meu nariz é o de Khentkhas.
Os meus lábios são os de Anubis.
Os meus dentes são os de Serket.
Os meus molares são os de Ísis, a divina
Os meus braços são os de Banebdjedet.
O meu pescoço é o de neit, senhora de Sais.
As minhas costas são as de Set.
O meu falo é o de Osíris.
As minhas carnes são as dos senhores de Kheraha.
O meu peito é o do Grande de prestígio.
O meu ventre e a minha coluna vertebral.
São os de Sekhemet.
As minhas nádegas são as do Olho de Hórus.
As minhas coxas e as minhas barrigas das pernas são as de Nut.
As minhas pernas são as de Ptah.
Os meus dedos dos pés são os dos falcões vivos.
Não há em mim um membro que não tenha um deus.
Tot é a protecção de todos os meus membros.
Eu sou Ré de cada dia..

Simplesmente grandioso!

A poesia no Antigo Egipto, mormente o erotismo tinha várias funções: demiúrgica, profilática. Havia uma poesia porno-concupiscente.
A poesia japonesa e chinesa tem um lugar cativo. Matsuo Bashô, o criador do haicai é de uma síntese incrível e com um olhar zen sobre a natureza que impressiona.


A pequena lagarta
Vê passar o outono
Sem pressa de se tornar borboleta.

A poesia chinesa dos séculos X a 13. O chinês Su Dongpo.

Vigésimo sétimo dia do sexto mês, poema composto estando eu embriagado, no Pavilhão da Contemplação do Lago

Peixes e tartarugas em liberdade me vêm seguindo
Lótus selvagens flores cem por todo o lado
Embalado pela água, da minha almofada vejo o vaivém da montanha
Levada pela brisa a minha barca sabe seguir o vagar da lua.

Su Dongpo

Os poetas árabes do Al-Andaluz como A- Um'tamid, Ibn Amar.

Há muitos outros, a lista é longa e seria fastidioso enumerá-los todos e transcrever alguns textos sublimes.
Aconselho vivamente a leitura do livro "poesia de 26 séculos", antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Seana, edições ASA, 3ª edição, Lisboa, 2001. Percorre um espaço temporal que vai desde Arquíloco, poeta jónico do século 8 a.C. até Friedrich Nietzsche falecido no ano de 1900.



9. Perguntar pelo futuro é já um lugar-comum, um cliché, mas correndo esse risco perguntar-lhe ia que horizontes desejaria romper um dia?

J.F. – Parafraseando o poeta espanhol António Machado, faço a vida caminhando. Não penso no futuro. O que me interessa é o presente que é a construção dele, do futuro, onde rompo as barreiras que se me apresentam necessárias para serem ultrapassadas.
A escrita é um instrumento fundamental para se quebrarem muitas barreiras: conceitos, que são construções espácio-temporais, como os conceitos morais ou religiosos, autênticas barreiras que impedem a humanidade de conviver com o total respeito pela diferença.
10. Senhor José Félix, muito obrigado pelas suas palavras. Quer deixar uma mensagem, uma frase, uma ideia particular aos nossos companheiros da Lista?

J.F. -
Escrever o poema como se fosse o último da vida.

*Entrevista a José Nascimento Félix

José Nascimento Félix, natural de Angola, nascido em 1946, em Luanda.Licenciado em História pela F.C.S.H. da Universidade Nova de Lisboa.
Promove a frequência de listas de discussão poética na Rede, tendo criado a lista Escritas suportada pela página literária pessoal Encontro de Escritas, em http://www.escritas.paginas.sapo.pt/, com entrevistas, divulgação de poemas e novos poetas de língua portuguesa. Análise, crítica literária, ensaio, trabalhos feitos por alguns associados para um grupo de cerca de 200 autores e/leitores de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Obra literária :
- Geografia da Árvore (a reinvenção da memória), Col. Poéticas de Lav(r)a, Múchia Publicações, Lda., Funchal, Outubro de 2003
Está publicado em várias antologias, destacando-se a Antologia de Poesia Actual Portuguesa, em edição bilingue, português e castelhano, de 2006, e uma colaboração com o poeta brasileiro, Aníbal Beça, membro da Academia Amazonense de Letras, no livro "Chá das Quatro", com haicais e que integra o livro Folhas da Selva, Editora Valer, Brasil
- Antologia Horizontes do PD-Literatura, Brasil, 1999 - Poiesis II, Poiesis III da Editorial Minerva (MNA), Portugal, 1999, 2000 - Antologia "Incomensurável" - Poesia a treze, Editorial Minerva, Portugal, 2000 - "Inspiração Erótica" - Antologia da Associação Cultural de Jundiaí, Brasil, 2000 - "Espelhos da Língua" da Sociedade de Escritores de Blumenau, Brasil, 2001 - "Quatro Poetas da Net", Edições Sete Sílabas, Setembro, Lisboa, 2002 - "Prosa & Verso", Projecto Palavra Azuis, Vol.2, da Sociedade de Escritores de Blumenau. - "Encontro de Escritas" – Antologia nº1, Lisboa, 2004 - "Encontro de Escritas" – Antologia nº2, Lisboa, 2005 - "Encontro de Escritas" – Antologia nº3, Lisboa, 2006 - "Encontro de Escritas" – Antologia nº4, Lisboa, 2007 Prefaciou os livros "http://www.3poetasemleiria.pt/", de José Gil, Don Lackewood e Constantino Alves."Laços & Lazos", um livro bilingue, de José Gil e Sónia Regina"De cada poro um poema" de Antoniel Campos"Catavento" de Everardo Torrez Getz, autor mexicano."Esfinge Lunar" de Goulart Gomes, poeta da Bahia, Brasil
Muitos dos seus trabalhos estão publicados na Rede, em várias páginas literárias digitais portuguesas e brasileiras, como a [NON], Usina de Letras, Palavreiros, Nave da Palavra Alternância, Jornal de Poesia , Encontro de Escritas, Seixo Review e no seu blog http://ateiadaaranh/a.blogspot.com/

sábado, 14 de julho de 2007

José Félix

atonia
[para a ana maria costa]

só há duas bocas:
uma cala na fala
outra fala em silêncio.

só há duas falas:
uma diz em silêncio
o que a outra apunhala de incenso.


josé félix

2007.7.14


Pintura

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Francisco Coimbra


acentuações mais intimas





sente como a beleza acenta

nas acentuações mais intimas

de rimas que intersectas soltas

num efusivo explodir de erupção



onde o poema começa largas

um balão da mão duma criança

sem que ela chore pois repara

súbito incêndio de luz: o Sol



como essa criança delicio-me

na abundância de alma na mala

onde guardo a bagagem de lama

repetindo prazer que aqui chama



cada incandescência inflamada

nestas conversões duma fé acesa

onde também converto quem siga

o horizonte pelas palavras presente



observo na concha dos poemas

onde colecciono madrepérola

do magnifico movimento celeste

duma colorida aurora boreal



quanto ao real versus realidade

verso versos neste latim latido

do fundo da memória-mundo

onde a língua fala a Língua



muda enquanto escrevo mudo

para que o silêncio dê moldura

ao que farás vibrar na tua voz

se a seguir tentares interpretar



o calor da palavra inebriada

pela liberdade de poder viver

como a fala fala do que é falar

mesmo enquanto mudo mudo



até nos juntarmos no destino

onde ambos começámos a ser

duas hipóteses distintas agora

unidos numa enorme síntese



quem sente o poema lê outro

que ele mesmo é ao descobrir

os sonhos dentro das palavras

prontos a acordar na leitura



não temos outro leito para ir

da nascente em direcção à foz

onde o poema acaba recuperas

um balão na mão duma criança


Francisco Coimbra

Pouco me importa. Pouco me importa o quê? Não sei. Pouco me importa."

(Foto: Autor Desconhecido)

de Alberto Caeiro, in "Poesia", edição Fernando Cabral Martins e Richard Zenith





01


Havia um quê

na história

que nunca consegui

decifrar.

Um tanto de lenda,

um tanto de mito,

aquela mania

de misturar

o real e o imaginário....

No final

consegui apenas

salvar as borboletas,

que levemente

voavam sobre

minha cabeça...

Não me peçam

coerência

nessas questões.

Sou poeta!


02


Não importa

onde pouse o olhar

não importa

a identidade

nem o coração partido

Não importa

a desventura

nem as portas fechadas.

A alvorada traz a denúncia,

Incitando à liberdade.


03


quando olho pra cima em dia nublado,

sei do azul por trás das nuvens

mas pouco me importa o que sei

e não saber pouco me importa


04


se para a janela me conduzo

sem me impressionar com o vidro sujo

sem lamentar o pesar dos passos

sem resistir ao apelo do sol
ao teu encontro
se pela porta saio

depois do escuro chegar

se no dia em que pelas escadas rolar

a minha consciência

a minha força

o meu talento de te fazer rir

desaparecer

pouco me importa

pouco me importa o porquê…


05


... não sei, pouco importa

que águas turvas inundem, destruam,

que subam, que subam,

que animais se extingam, se maltratem, se abatam,

que ares se tornem irrespiráveis, casa de todos,

sejamos poucos,

que roubem o alheio, com fúrias pelo meio,

que sejam selvagens,

não tenho receio,

que corra para cima, que venha para baixo,

calcando quem vem, não olhando a quem,

que um nado-morto, venha já morto,

não sei, não me importo.

que se acabe com tudo, ventos frios do norte,

suão que indispõe,

sequia que murcha, que suja, enegrece,

avilta, envilece,

que manche a verdura, que cerre esta porta,

já nada me importa,

bem sei

que o Mundo está louco,

me envergonho, escondo meu rosto,

enrubesço quando me indigno,

já não enfureço por isto, por aquilo,

admito bárbaros costumes,

usanças que avançam,

hábitos que instalam,

corações empedernidos, olhares que afastam,

pouco me importam,

o quê???...

indiferenças e medos, tudo suportam,

germinar da desgraça,

triste trapaça,

ilusão permanente no vale, no monte,

sol que se põe, noite que desponta,

estrelas que não brilham, Lua que afronta,

tétrica até,

pouco importa,

não sei,

sem crença, sem fé,

de rojo me ponho,

não dou

porque já dei,

quase me descomponho,

me nego, me escondo,

altero quem sou,

o quê???...

não sei, pouco importa,

aceito o avarento, o hipócrita de medo,

o cínico interesseiro, a vaidade, o espavento,

a mentira soez, o segredo,

avulto o dinheiro, ignoro quem chora,

quem sofre, vai embora,

morto esquecido, esfomeado que resiste,

fera que insiste,

guerra como solução,

abate de gente, morte na multidão,

crime, perversão,

ódio que agita, dores que cumulam,

doenças que dizimam,

perco a razão,

quem muito sofreu,

quem tudo suporta,

já deu,

ensandeceu,

cerra vontade, alia a maldade,

amoleceu,

ignora a verdade,

aplaude a vil pujança,

corrupio, desvario,

insensatez que prevalece,

imola, esquece

inerte temperança,

oca esperança de quem mata, acomete,

tudo promete,

o quê???...

não sei, pouco me importa,

medo, indiferença,

quanta descrença

que tudo suporta!!!...


06


Eu sei

Eu e só eu
apenas eu
sei
como é difícil amar
e parecer
ao mesmo tempo,
não se importar.

Como é difícil viver
esperando o teu olhar
e parecer
não se importar.

Como é difícil viver
com toda a alma de bruços
a chorar
e parecer
não se importar

Como é difícil viver
fingindo representar
um amor que se tem
e que nos faz doer
mas que não se quer mostrar
e parecer
não se importar.

Como é difícil viver
a falar, falar, falar
sem nada ter que dizer
aos outros, que não a ti,
e parecer
não se importar.

Como é difícil viver
a escrever, ler
e pensar
mas ter a mente vazia,
dos outros, que não de ti,
e parecer
não se importar.

Como é difícil viver
Com o mundo à nossa volta
a passar
e nunca te ver a ti
-nunca te ver nos teus olhos -
e parecer
não se importar.

Como é difícil viver
como quem vive a sonhar
mas tem a alma desperta
para poder adivinhar,
a ti, no modo de andar
e parecer
não se importar.

Como é difícil viver
sentindo o sangue a pulsar
como se fosse morrer
de tanto ser e amar,
e parecer
não se importar.

Como é difícil viver
e parecer
não se importar.

07

pouco me importa
tudo mesmo
escrito

se o que sinto
nem lendo

em mim ressuscito


08


A dor, a taramela da alma

a repetição da carne

o acasalamento do sangue

com o coração.

Pouco me importa o grito

o coração a alma eu ressuscito

a dor… não sei!


09


Pouco me importa

o pouco me deixa louca

e nem com pouco sou capaz

louca e rouca

pouco me importa

se o quê é tudo

e o tudo não me satisfaz.


10


As rosas desprendem-se do galho espinhoso
Os miosótis têm esmaecidas suas pétalas
Os girassóis pendem amortecidos
O jardim inexiste ao redor da casa

Pouco me importa. Os vasos eram de vidro
E quebraram-se.


11

o elevador
que leva
à todos
passou
por aqui
e estava
lotado

subindo

pelo sim
pelo não

vou descendo
bem devagar

mas pela escada


12


Pouco me importa

Saber se o sol brilha.

O que me importa

É tê-lo nos meus dias!


13


O que importa

Se a iniquidade impera

e não somos todos iguais.

Há mais cores no arco-íris

do que os olhos enxergam...

Mas quem se importa?


14


pouco importa

o hábito que vestimos

se não forem

determinados pelo coração

e não importa

o que os outros pensam

que sentimos

no cantar do vento

mordendo as nossas bocas.

importa saber

sermos sol sal ou mar

céu estrela ou luar?

se no movimento do vento

foge o ás de copas

e ficamos sem voz,

com o ás de espadas.!.


15


Levanta-se a poeira aos passos do homem
que, apesar de tudo
não aprendeu a caminhar.
Arrasta-se
carregando aos ombros o jugo
de sua própria intransigência.
Mas não importa.
Ou ele aprende
ou se consumirá.
No mundo que foi seu
ficarão as moscas.
E as baratas.


16


Pouco me importa o porquê…


17


Queria saber duma só palavra.

Que fosse eterna e emergente

A Nascente nos Tempos perdida

Dos sons em névoa que usamos na foz.

Que não se esgotasse nos ecos bastardos

Nem morresse nos braços do nada

Que uma vez pronunciada

Fosse Mãe e Terra e som

E sem mais dizer-se nada

Ser o silêncio a alvorada

Da importância de estar calado,

O que julga ser som importante.

Jamais haveria de então em diante

Trocadilhos, eufemismos...

Frases feitas de outros sentires

De mentiras e importâncias.

Mas assim que coisa eu digo?

E se digo o que importa?

Só estes sons que o tempo corrói.

Que longe de serem importantes

São a mágoa que me dói.

De não importar que morram em nós...


18


pouco vale (o) espanto
se não espanta
quem vê

como outro
viu (o)

espectáculo dum verso!


19


pouco importa se calças de cinco anos atrás se arrastam

desfilando desfiadas nas calçadas onde cobertor é colchão

pouco importa a falta de café aquecido e de um pão endurecido

pouco importa se a garoa ou a chuva vararem madrugadas

pouco importam as grades a inanição a fome e os abusos...

pouco importam os discursos nos púlpitos e nos falsos tronos

mendigos admiram a lua? letras & estrelas enchem barrigas vazias?

no antagônico onde vivem as almas dos humildes "vagabundos"?

o que vaga ao pisar na lama? ao prov(oc)ar o sabor do egoísmo

...ah divinas fontes! ah! sal do mar... doces rios lavam todos os corpos?


20


pouco me importa
tudo mesmo
escrito



*Índice de autores:*


01 – Belvedere
02 - Andréa Motta
03 - Sónia regina
04 – Filipa Rodrigues
05 – Manuel Xarepe
06 – Geraldes de Carvalho
07 – Francisco Coimbra (FC)
08 – Ana Mª Costa
09 – Bernardete Costa
10 – Linda Maria
11 – Rogério Santos
12 – Cármen Neves
13 – Denilson Neves
14 – Ísis
15 – Dalva Agne Lynch
16 – Filipa Rodrigues
17 – Carlos Luanda
18 - Assim
19 – *Rosangela Aliberti
20 - Francisco Coimbra


terça-feira, 3 de julho de 2007

Entrevista a Carlos Alberto Roldán***

Tradução: Carlos Luanda

1. Carlos, a lista "Utopoesia" tão semelhante à nossa "Amantedasleituras" conta com a participação de poetas latino-americanos mas também portugueses, não é verdade? Achas que as listas de criação literária são uma ponte dialéctica e cultural que permite um intercâmbio de experiências humanas entre os povos?


Carlos Roldán - Não somente é verdade como também sou gestor de todo um movimento que busca o entrosamento dos escritores desta parte do Continente. E se não insisto a alargar a outros países é porque este intento me exige muito tempo e esforço, coisa que eu não disponho em demasia. Isto também limita seriamente a minha participação em listas como o "Amantesdasleituras"; a muitos dos membros os incomoda, e com razão, o facto de não me entregar um todo a um projecto e de lhe dedicar mais tempo e com outra profundidade. Sinto o mesmo quando na lista "Utopoesia" alguém se limita a enviar réplicas de poemas; dói-me.
Mas estou empenhado num primeiro gesto a algo de novo. Trato de aprender com as nossas diferenças e não me entusiasmar em demasia com o que temos em comum. Quero poder oferecer a todo o Brasileiro, Português ou a todo o Latino-americano em geral um microfone num ponto (ou mais) de leituras na
Argentina. Um lugar diante de jornalistas, uma tribuna num lugar Académico onde apresente a sua obra. E tacitamente peço o desenvolvimento de outras organizações equivalentes do lado de lá, seja em que país for. Para criar para a América Latina a grande Pátria que nos espera.
Se nos limitamos a conceber as listas de correio como um lugar onde mostramos os umbigos, de pavoneio narcisista, estamos perdidos. A literatura é um empreendimento a desenvolver em grande, muito para além do próprio livrito.

2.Diz-se que a literatura argentina passeia pela rua, que todo o quotidiano é convertido em poesia, que existe uma cultura produzida para sustentar, manter e fortalecer a poesia.
Concordas com esta afirmação? Achas que existe divulgação, o interesse merecido pelo vosso povo e além-fronteiras?


Carlos Roldán - Não exageremos, pois não sei se essa afirmação estará correcta. Existe de facto uma muito boa qualidade estética e um conhecimento pleno dos que são, de facto, criadores. Quem aprende sabe que se não se amplia em leituras e incorpora, nunca terá a sua literatura aceite. Quando um escritor diz que escreve assim porque lhe "sai assim" defendendo uma suposta sabedoria espontânea, estamos fritos também. O poeta faz-se trabalhando, borrando recomeçando de cada vez.
Todo aquele que pensa saber tudo, e se fecha à leitura e à crítica dos seus pares, perde o grandioso que pode ganhar com isso.
Há uns anos tornei-me o Ogro dos criadores das listas de correio quando quis impedir o elogio fácil do tipo " que lindo" e do " gosto muito" e disse-lhes que enviassem esses comentários uns aos outros fora das listas e que se dissesse antes, sempre que houvesse lugar a elogios, o porquê, que razões haveria para esse elogios, em que se fundava e o que viam de bom na prática poética exposta. Que se passasse do elogio vazio ao trabalho crítico. Houve protestos mas começaram a fazê-lo. Hoje são outras as pessoas, outros os tempos e muitas coisas se esqueceram. (as listas mudam muitíssimo de mês a mês). Eu estou mais brando. Mas aquilo serviu então.
Buenos Aires que não é o espelho de toda a Argentina tem uma quantidade de teatros e de actores por habitante que supera talvez qualquer outra cidade do mundo, tal com o a sua actividade literária e psicanalítica, e nisso apresenta ser um País que não parece dar-se conta dos problemas económicos dos seus habitantes. A crise fez-nos a todos mais pobres. E os que escrevem são ou actores ou psicanalistas e fazem-no à beira da indigência. Somos incrivelmente persistentes, obstinados. E o efeito é positivo. Por vezes vejo pessoas muito humildes nos eventos o que me lisonjeia. E oiço as críticas duma profundidade que não esperava do público em geral, e isso é muito bom; OBRIGA!
Quanto à divulgação; há tanta gente nova e nem chegamos a conhecer os nomes que deveríamos saber. E para com os autores Brasileiros, Portugueses, Uruguaios, Paraguaios, Colombianos etc., a dívida é quase impossível de saldar. E isto por duas razões. O descuido deles em relação à divulgação noutros países, e um certo nacionalismo pacato que consiste em não ver o que de grandioso ocorre para lá das nossas fronteiras. Desconhecer o que se passa em matéria cultural num país vizinho, é imperdoável. Sei muito pouco da actividade literária dos Brasileiros mais conhecidos, dos Bolivianos, dos Chilenos, dos Uruguaios e dos Paraguaios mais conhecidos. Obviamente que a distância pode ser um factor que leve ao desconhecimento. Curiosamente porém devo dizer que conheço mais dos escritores Portugueses que dos latino-americanos. Será que se preocupam em difundir-se?


3. Suponho que exista uma diferença entre a poesia que começou a ser escrita na Argentina, desde os anos 80 e a poesia que nasceu em plena ditadura. Que distinções fazes?

Carlos Roldán - Irrompem novas gerações, por vezes com maior liberdade que a nossa presa aos medos conservadoramente adquiridos. Às vezes é terrível a ignorância quanto ao que se passou, do genocídio à diáspora. Nós, os Argentinos não falamos nunca de nenhumas das diásporas. A do processo e a de há alguns anos, quando enormes multidões saíam do país. Jovens na sua grande maioria, filhos de outrora imigrantes agora em êxodo para sempre da Argentina.


4. Carlos o que te enamora na poesia portuguesa?


Carlos Roldán
- A absoluta musicalidade. A língua Portuguesa parece-me ser duma sensualidade espectacular. Nós somos de outra dureza. Em parte é certo e justificado.
Estamos rodeados de mortos. Em circunstâncias atrozes e não somos ingénuos nem crédulos...


5. Carlos Roldán. Diz-nos de que forma as listas têm ajudado a dar a entender ao mundo que a Argentina é muito mais que o estereótipo do Tango e Buenos Aires e que existem muitas mais Argentinas dentro da Argentina?

Carlos Roldán - Na Argentina o tango é como um traje velho, cheio de recordações que ás vezes vestimos. Somente ás vezes. Há ressonâncias de algumas coisas do tango em nós, mas creio que é mais uma linguagem que uma música. Falamos com um jargão que nos projecta ao infinito, que não é necessária mas que nos
identifica. É uma plataforma da nossa identidade. Sim. Um tango quando estamos longe, faz-nos chorar como tontos.
O tema várias Argentinas é muito importante. Em Buenos Aires estamos mais próximos do mundo do que das nossas províncias. Na "Utopoesia", por exemplo não há quase provincianos. E as listas que congregam provincianos não toleram muito bem os portenhos* . Bem, aos portenhos ninguém os tolera até que se os conheça a sério. A caricatura do super ego que lhes é atribuída cai quando se vive aqui. Ninguém diz pior do seu país do que um Argentino dum portenho. As pessoas de fora do país confundem aos burgueses de má vida que se dedicam ao turismo, com o habitante médio de Buenos Aires. Mas esses arribadores não são bem-vindos aqui.

*Nota do tradutor: Portenho: Habitante de Buenos Aires.

6. Tu que foste uma voz que gritou contra no tempo da escuridão e da mordaça, diz-me se achas que há hoje mundo que chegue para sentir o que tens para dizer?

Carlos Roldán
- Se não há mundo para ouvir quem fala da escuridão e da mordaça estamos mal.
Todos devem escutar o que se sente quando as ameaças duram as vinte e quatro horas do dia. Quando se sai de casa sem saber se sim ou não vai regressar.
Quando as forças armadas enchem as ruas de camiões carregados de obreiros muitos dos quais jamais irão regressar às suas casas. Tem que existir um mundo que oiça isto.
Ah Carlos: não sei serei alguém tão importante. Há gente que de facto o é.
Eu sou quase, apenas, um amanuense das minhas pertenças cuja única virtude é a firmeza da sua ideologia.


7. Que poder tem as palavras neste mundo feito da frieza de números? Que força pode ter o poema?

Carlos Roldán
- A da invenção de janelas onde elas não existem. A proposta dum sorriso quando tudo nos quer nivelar e isolar. A palavra é a nossa fibra da luz e a forma de arribar ao continente cálido do outro.

8. O poeta está sempre para além do horizonte. Inconformado, o seu reino tem a capital na Utopia. Fala-nos brevemente do teu ideal...

Carlos Roldán
- Se a poesia não serve para mostrar uma vida melhor, para instalar o desejo, não sei para que sirva nada na vida.


9. Lembras-te do teu encontro com o teu primeiro poema? Como vêem os teus olhos de poeta o Futuro?

Carlos Roldán - Fiquei surpreendido como um rapazito que descobre algo deslumbrante que não sabia existir. Tal como quem vive uma primeira noite inesquecível de amor.

10. Senhor Roldán. Muito obrigado pelas suas palavras e pelo seu tempo que é sem dúvida precioso. Quer deixar alguma mensagem a todos os companheiros que incorporam esta lista?

Carlos Roldán - A poesia é um jogo libertário, erótico e selvagem, gargalhada, piada (trocadilho)*, felicidade.
Viva-se, que como dizem os jovens de Buenos Aires, numa destas noites chocam os planetas. Viva-se então em pleno. (carpe diem)
Um abraço gigantesco e espero que abramos de par em par as portas do céu para que possam entrar todos.
Por favor, quero ter contacto com tudo o que vós façais e que me envolvam
nisso.


* *Nota do tradutor, no original: Joda, traduzido para piada. Tem diversos sentidos consoante os países de língua espanhola. Na Argentina é piada no sentido inteligente e trocadilho, no México significa contrariedade e aborrecimento, e noutros países quer dizer preconceito.. É ainda usado na fala corrente com o sentido aproximado que lhe damos no português, e quando a conversa não nos agrada; o nosso: "vai-te lixar".


***Carlos Alberto Roldán (por vezes assina como Carlos Alberto Roldán Ledesma) nasceu a 14 de Dezembro de 1946 em Saenz Peña, província de Buenos Aires, Argentina. É Docente, Ensaísta, Poeta e Jornalista. Realizou estudos na "Carrera de Filosofia, na Universidade Nacional deBuenos Aires, e no Instituto Superior de Professorado "Joaquín Victor González", de onde ingressou como professor de Castelhano, Literatura e Latim. Exerceu em diversos estabelecimentos nacionais e provinciais, na EGB3, ESB; Polimodal e Terciária sendo catedrático num sem fim de matériasrelacionadas. Em Janeiro do Ano 2000 criou a lista "Utopoesia" uma das mais importantes de língua Castelhana e Portuguesa (http://www.groups.yahoo.com/group/utopoesia ).
Em 2003 criou os" Encontros Poéticos" aos microfones de Ventos Contrários pelos quais passaram centenas de poetas, narradores e declamadores de poesia. Sem apoio de nenhuma instituição pública ou privada, encetou a organização do seu projecto mais ambicioso: o de entrelaçar instituições literárias de todo o tipo e de diversos países para gerar neles verdadeiras "Embaixadas Literárias". Ao fim de dois anos de empreendimento alguns resultados parecem indicar os frutos dessa marcha. A promoção da literatura tanto na escrita como na leitura, ocupa nele amesma dimensão. "Quero criar alternativas à já conhecida espartilha livresca; todos os meiosinformáticos e presenciais me parecem fundamentais para quem não conseguepublicar por não possuir condições económicas." diz. Destaca além disso" por pouco que se caminhe descobre-se por demais o valor literário que nunca pode ter acesso ao "mercado" nem tampouco sequer o direito de figurar no horizonte dos escritores da sua época. E isto é algo contra o qual se tem de combater." Boa parte dos seus textos foi publicada em listas, páginas de web de amigos, weblogs e revistas literárias virtuais.
Tem dois livros publicados:1 - 55 Aniversario del Ateneo Poético (1950-2005), Ed. Creadores Argentinos,Buenos Aires, 2005.
http://www.creadoresargentinos.com2 – Poesiadas Editorial El Escriba, Buenos Aires, 2007
Tem em preparação um livro de contos que planeia publicar este ano: "Histórias del otro lado da colina".

segunda-feira, 2 de julho de 2007

"No fundo da alma, um grito de veludo,"


(Foto: autor desconhecido)

de Nina Rocha, in Desafio: "Bebo-te como água"

01

o homem cansado do sangue e das palavras
vive o pesadelo dos dias no incêndio duma rotina
redonda de dor e fome
e sua alma grita um silencio profundo

senta-se no cenário semelhante à alma
e procura na pólvora das ruas e dos sonhos
o sinal branco duma furtiva lágrima

e no escombro das casas pregado à fome
e à dor o homem aguarda a vinda de seu senhor e
acredita que o céu não dorme

mas são somente seus gritos de veludo que ecoam
nos ouvidos dos senhores do mundo


02

… sentado em banco amplo, robusto, madeira pesada,
num dos muitos que a enchem, catedral de la Almudena,
colunas coríntias, criptas de encanto, vitrais diversos,
pinturas, frescos já recuperados,
fúria dum corpo, arrasto dum mal,
decrépito, já velho, figura de pena,
idoso, cabelo em desalinho em surda conversa, tristezas, segredos,
injúria, pela expressão que mostra,
olhar cravado no Cristo que culpa,
braços abertos, na Cruz da Catedral,
perante todo aquele espaço, arranjos florais, altar que se alça,
tronos dos clérigos com espaventos,
incúria dos tempos,
grito de alma,

grupos espaçados,
chusma que tira bonecos, se extasia,
clarões diversos, às vezes parados,
vozes de veludo, som que cicia,
crentes, não crentes, origens diversas,
deambulam, dispersam,
nave primeira, nos altares,
nave que cruza, na lateral,
jovens aos pares,
saudáveis, sem mal,
talhas doiradas, Senhora de seu nome,
tríptico com ares,
cenas bíblicas que gritam preceitos,
velas, esmolas, santos, santas,
pintadas, esculpidas, desconformes, com jeitos,
aconselham, avisam,
mudas que gritam,
almas que sentem trejeitos,
defeitos,

olhos que incendeiam, escancarados, ausentes,
mãos trémulas, frementes,
voz cava que balbucia,
não cala, invectiva,
acusa o sacrificado pregado na cruz,
da ostentação que sente,
dela afastado, de ausente,
amplidão tão fresca que convida ao recato,
descanso tão grato numa tarde de Verão,
sem penitência, simples oração,
visita turística, portas adentro,
relevos de medo,
bronzes pesados,

Petrus descomunal, pedra que pesa, que assombra, real,
casamento gravado naquele local,
Palácio do Oriente ofusca culpados,
góticos que enlaçam, que cruzam, traçam,
pormenores tão densos, gritos de alma,
vozes de veludo dos que visitam,
passam,
visão que estarrece, velho que sucumbe,
dor que grita, pedras seculares
para quantos lares,
estarrecem, incitam,
amedrontam,
chaga que arrasta,
acalma,
quanto se afrontam!!!...


03

A solidão das pedras é maior
e mais profunda
que a solidão de corpos.
Na verdade
não há fundo nenhum na alma
e é tudo mentira.
Na verdade
não se recebe amor amando
nem proteção protegendo.
Na verdade
não há resgate
para o solitário das pedras.
Na verdade
toda a filosofia é inútil
perante o poço alheio.


04

É este sol...
Sua luz em mordaça
Sua vontade de encher-me de si
nesta sombra que teima ficar,
e não passa.
Silencia num riso
o grito que de veludo
esconde tudo
mostrando a alma
no fundo...


05

[-]
no fundo da alma
o mundo abre-se
como um grito
de veludo!...

[I]
escrevo apenas para ti
para que saibas
o que sentes,

o que...
o que não podemos,

o que não queremos mentir

[II]
as palavras sentidas
em poesia

[III]
secretas certezas dadas
na recorrência de
termos...


06

O obscuro dos dias
que te prende a fala
se desmancha num sorriso.

Saltam as sílabas desconexas
[as inflamadas] ,
mas só o afago profundo
nas frases da alma
toca os sentidos
que escrevem
orações no corpo
e, do fundo, soltam
[à claridade]
palavras sem mordaça
num grito
de veludo.


07

bebo-te em demasia
num gole violento
sedento
na ressaca do dia

escorres
pelo canto da boca
hidratas a garganta
em quase asfixia

estancas o tempo
unguento
mareias o leito
num brinde à orgia

alimento
não cabe ferrolho
catavento
antídoto
por detrás da gelosia


08

ofereço-te os chinelos
Suaves que são
Teu pijama
Riscado de prisão
Anarqueia o sofá
Fofo como veludo
E morre frente a essa
Tua amada televisão!

Claro, de copo na mão
E o inerte cigarro lento
a conspurcar o pigarro
o salão!

Fico do teu lado
Mudo
Assistindo a tudo
Maldita televisão!

Que te absorve os gestos
As palavras e os sentidos
Desconexo e fere
o semblante
traído

bem no fundo
lá onde a alma habita
ainda existes
perenemente adormecido


09

no seio das cores do amor
ardor magnético
glória e ventura
iluminavam o espaço da vida
desde a alma ao pensamento
dos olhos ao coração
até que...
o fel sombrio do manto da noite sem eco
cobriu esse espaço.
do lado de cá...a saudade
veste veludo roxo profundo
no fundo desta alma
onde tu estás.!.


10

No fundo da alma
tenho um grito mudo
um grito que me afoga o coração.
Não é de veludo
não.


11

no fundo da alma

a água é azul ou verde

o grito é transparente e despido.


12

No fundo da minha alma
Há veludo
Seda e
Chitão.


13

Se o tempo não tivesse passado
tão célere, tão descompassado,
eu ainda teria cachos nos cabelos,
e flores, emoldurando-os.
Ouviria Lennon, junto a outros adeptos
e sorriria, cheia de esperança
em dias amenos...
Se o tempo não fosse esse senhor implacável
eu ainda teria tantos sorrisos, afagos...
O que me aniquila é não aceitar
o tempo tal como ele é.


14

não foi com ele ao baile: além da falta
da química, a alma toda lhe fazia mal.

soube que ele se olhava no espelho,
narciso, e admirava a contradança
de seu corpo e alma que, no fundo
guardava um grito

de veludo.


15

No fundo da minha alma
Mora um sujeito contente
Que levanta e bate palmas
quando dou passos à frente

Mas no fundo da minh'alma
Também mora alguém silente
– Bem lá no fundo da alma! –
Que ama me ver doente...


16

Serão os dedos profundos
Que afagam o cerne da alma
Sejam eles veludo ou língua
De sopro inventado no grito
Calam bem fundo germinando
a palavra

Será de sonho vestido a penas
do toque
[acorde de alvoradas]
Suave de pele intocável
Pressentido sem escama

no escárnio dos dias
algo nasce e túmido inflama




Índice de autores:

01 – Bernardete Costa
02 – Manuel Xarepe
03 – Dalva Agne Lynch
04 – Carlos Luanda
05 – Francisco Coimbra
06 – Sónia Regina
07 – Rogério Santos
08 – Luís Monteiro da Cunha
09 – Teresa Gonçalves
10 – gdec
11 – Ana Maria Costa
12 – Cármen Neves
13 – Belvedere Bruno
14 – Sónia Regina
15 – Denilson Neves
16 – Luís Monteiro da Cunha



Comentário do Moderador:

Amigos, por fim, constato com enorme agrado a existência, díspar, de conceitos, palavras e imagens sobre o mesmo tema, demonstrando que cada um leu o tema, analisou e pensou apenas por si.
O resultado é este belo e quase esclarecido poema que brotou do veludo das almas.
Agora vou tratar de partir para férias. Gozar o merecido descanso do guerreiro.
Abraço Luís.